Sobre a arte, a tevê e o funk

Sobre a arte, a tevê e o funk

“Dito de outro modo, os sentidos não se  fecham,

 não são evidentes, embora pareçam ser…”

(Eni P. Orlandi)

 

Lembro-me vagamente de quando cursei o Ensino Médio, na época chamado de “curso de segundo grau”. Para ser mais exato, fiz curso profissionalizante em eletricidade.  Naquele tempo, discutia-se nas escolas a legalização do divórcio e seus impactos na nossa sociedade. Alguns professores, mais ousados, usavam textos de Chico Buarque e Caetano Veloso para nos ensinar Literatura. Que nada! Tais músicas eram apenas um viés para que eles pudessem criar um contraponto com as canções da jovem-guarda e, por conseguinte, mostrar-nos o que era a ditadura militar nos anos 70. Com isso, conhecíamos manifestações artísticas diferentes, com objetivos diferentes – e aprendíamos a selecionar e desenvolvíamos um senso estético! Aprendemos que a arte constrói a História, ao mesmo tempo que a reflete.

Lembro-me também das aulas de Física. Nelas, em meio a tantos cálculos, entendíamos que para toda força de ação existe uma reação…  … que é apenas válida para os cálculos de Física, (in)felizmente. Do nosso presidente da república à época, que esteve (ou ficou?) com uma modelo (quem era ela, mesmo?) sem a calcinha no camarote no carnaval ao presidente que hoje se declara “incomível” e “imbrochável”,  quem reagiu diante de questões pessoais de pessoas públicas? Da mesma forma, houve alguma reação contra a lambada, axé, carimbo… ou qualquer outro ritmo com alguma conotação erótica? Houve alguma reação contra programas infantis que apenas erotizaram (e ainda erotizam) as crianças?  Não. Se houve, foram poucas e por meios errados. Quem teve o senso estético apurado se limitou a selecionar o que ouve, o que vê.

Hoje, há um segmento da população preocupado com a programação das rádios e das televisões e discute-se a ética e a moral nos meios de comunicação de massa. Certamente, o que há de positivo nessa discussão é a oportunidade de repensarmos questões maiores, como as causas dessas produções, oportunidade de repensarmos o Brasil que construímos nesses 500 anos. Mas… será que sempre foi assim?

Creio que sim, pelo menos na Literatura. Na Literatura, um grupo sempre produziu algo a que chamou de arte, um outro grupo sempre questionou a qualidade de tal produção. A título de exemplo, citemos o Romantismo. É sabido que a arte romântica foi construída pelos burgueses que, dadas as circunstâncias da época, não sabiam apreciar a arte clássica, nem tinham conhecimento para tal. Modelos Gregos? Latinos? Sonetos? Rimas? Não… quem dominava na época “criou” e aceitou como arte o verso branco, o verso livre, a cantar amores irrealizáveis, a volta à infância, a melancolia… enfim, tudo aquilo que eles – os burgueses – sabiam apreciar. Por estarem no poder, legitimaram sua produção artística. Na época, certamente, alguém não gostou e pode até ter protestado!

Desnecessário comentar sobre o Modernismo e sobre o Pré-modernismo. Novamente a História se repetiu. O que aconteceu quando um grupo de artistas quis pintar e escrever o Brasil? Será que todos os apreciadores das artes em geral aplaudiram Anita Malfati, Oswald de Andrade e todos os que renovaram o padrão estético da época? Monteiro Lobato não concordou com a nova manifestação artística. Justo ele, que criou o Jeca Tatu, que criou o “Sítio do Pica-pau Amarelo”, que tanto defendeu o Brasil e que tanto fez pelas crianças! O que será que foi dito de poemas como “Vício na fala”, de Oswald de Andrade, transcrito a seguir? Pra dizerem milho dizem mio / Para melhor dizem mió  / Pra pior pió / Para telha / dizem teia / Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados. Certamente um texto assim, na época, não era um poema, muito menos arte…

Não, não era arte! Era o Brasil assumindo sua identidade, sua realidade, afinal, a Europa estava muito longe! Juntamente com o Modernismo vieram à tona muitas realidades, cada região com a sua, e os problemas reais do Brasil passaram a ser cantados; não mais o sertão de Taunay, de Inocência,  mas o de Rachel de Queiroz, em O Quinze, o de Graciliano Ramos, em Vidas Secas.

Também, quer por omissão da população, quer por descaso do governo, no último século cresceu ao nosso redor um Brasil que mora em barracos, em baixo da ponte. Um Brasil que anda de ônibus superlotado, que surfa em trens. Um Brasil que produz (e muito) por um salário mínimo, para quem escola é sinônimo de lar quando há inundações; um Brasil visto nos carnavais, mas que incomoda quando se aproxima.  E permitiu-se que esse Brasil crescesse, não houve luta por justiça social, negligenciou-se todo e qualquer estatuto, toda e qualquer constituição. Foi esquecido, inclusive, que toda arte reflete os costumes de um povo ou de uma época.

Se tantas necessidades foram esquecidas, se tantos olhos permaneceram fechados a tantas mazelas sociais, por que mostrar o incômodo por determinadas manifestações artísticas? Afinal, o que mais é o funk senão a arte de um segmento da sociedade?  O que pode ser esperado de quem teve a Xuxa ou outra loira ou pessoa qualquer como babá, ainda que eletrônica? De quem dançou na boquinha da garrafa nos anos 1990 e agora é mãe? Tudo isso foi permitido e aceito, assim como foi aceito o presidente com a tal modelo naquele carnaval e louvado o outro autoproclamado  imbrochável e incomível.  Não houve reação. 

Por sua vez, o funk existe, está aí para quem quiser conferir, é a “bola da vez”.  Se ele incomoda, deve ser dado à população que o produz e o consome o mesmo padrão cultural e qualidade de vida de quem está contra ele. Aí sim haverá condições de igualdade e condições de escolha.  Parece-me incoerente aceitar um Brasil com condições sub-humanas de vida e negar sua manifestação artística. No mais, os professores de Literatura que se preparem para, no futuro próximo, informar aos alunos, talvez virtualmente, que “no início no novo milênio houve um manifesto cultural que etc e tal, pois a História se repetirá quantas vezes a permitirmos.

 

 

 

 

 

 

Elder de Santis é professor e mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep.  

 

 


(Imagem de capa: foto da Anitta – Valter Pontes/ Secom)

5 thoughts on “Sobre a arte, a tevê e o funk

  1. Belo artigo do prof Elder. O funk incomoda, mas a pobreza e a exclusão do qual ele é oriundo não. Assim é o modo operante da elite brasileira, insensível à realidade brasileira e suas expressões.

  2. Meu caríssimo Elder,
    Agradou-me muito sua reflexão. Ou seria “me agradou muito sua reflexão”? Duas formas de expressão, formal e coloquial, ambas plenamente aceitas e que cumpriram com sua função comunicativa. Suponho que assim, também deva ocorrer nas artes.
    Tive uma aluna que declarou não gostar de Chico Buarque. Quando perguntei o motivo, fui surpreendida com: “porque não entendo as letras dele”. Depois da surpresa inicial, passei a metabolizar tudo que estava por trás dessa simples e direta resposta. E sim, seu texto reflete bem as minhas conclusões. Parabéns!

  3. Belo texto, professor. Me levou a outra visão sobre o funk. Muito interessante essa minha descoberta.A importância , o respeito devido a toda forma de arte.Obrigada mestre

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