Não contem pra minha mãe

Era uma vez um carro esporte com três adolescentes derrapando por diversão, pela serra de São Pedro. Rodopiou desgovernado e parou com duas rodas girando em falso sobre o abismo. O motorista soltou um palavrão e esmurrou o volante. Que humilhação morrer assim, despencando serra abaixo como um barbeiro qualquer! A irmã, a seu lado, choramingava e dizia: “Eu não quero morrer, não quero morrer, não quero…”

A segunda garota sentia-se mais perto do abismo por estar no banco de trás e pensava alto: “Se eu morrer, minha mãe me mata. Ela não entende que morrer não é tão sério assim.” Essa garota era eu.

Foi meio minuto de suspense e rodas jogando pedras pra baixo, causando pequenos desbarrancamentos até que, por uma baita sorte ou perícia do motorista, as quatro rodas tocaram a beira do precipício e o carro conseguiu voltar pra estrada. Então o interrogatório começou. O casal de irmãos virou-se pra mim e perguntou: “Que história é essa de que morrer não é tão sério?”

E agora, como explicar uma história tão antiga? “Bom”, comecei, “é que o meu avô já morreu várias vezes e todo mundo ficava em volta dele perguntando o que ele tinha visto do outro lado. Queriam saber do túnel de luzes, saber se havia música, e anjos, e parentes, e conhecidos, e São Francisco, e Nossa Senhora… Ele não contrariava ninguém, mas mudava de assunto.”

“Um dia, passei mal na escola. Me levaram pro pediatra que pediu exame e descobriu que eu tinha pouco tempo de vida. Aí foi farmácia, benzedeira, promessa pra Nossa Senhora Aparecida e coisa e tal. Os parentes choravam pelos cantos quando me viam. No meio do desespero, meu avô resolveu tomar uma atitude e me chamou pra uma conversa particular sobre a morte. Ele disse assim: ‘Fiinha, o vô já morreu muitas vezes, você sabe. E todo mundo pergunta dessas histórias de túnel e luz. Olha, fiinha, não tem nada disso. As pessoas acreditam no que elas querem acreditar, mas eu já fui e voltei e não vi nada. Não tem nada pra ter medo, nem nada pra querer ficar lá, também. Então, fiinha, se algum dia você for pra lá e, pra você, tiver um túnel, diga pro pessoal de lá que você tem que voltar porque seu avô está aqui, do lado de cá, e está te chamando. Entendeu? Vai brincar!’”

“E você morreu?” perguntaram meus amigos. “Que eu saiba… não”, respondi.  “Tomei umas vinte injeções e, no fim, parece que o único problema era um exame trocado no laboratório. Alguém morreu naquele ano, pensando que estava só com uma gripinha. Meu segundo exame mostrou saúde perfeita.”

Meus amigos acharam a explicação estranha, mas a verdade é que meu avô só morreu definitivamente muitas décadas depois de me ensinar que a morte não é tão séria assim, podemos negociar com ela. Já fiz isso algumas vezes. Não contem pra minha mãe.

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Carla Ceres é escritora

 

30 thoughts on “Não contem pra minha mãe

    1. Meu avô era um tipo de ioiô do além, Camila. 🙂 Que eu me lembre, esteve clinicamente morto umas três vezes. Fora as outras que não me contaram. Beijos!

  1. Ah! Fiquei cantarolando:- …e na estrada de Santos não vou mais passar”… E, fase boa, hein Carla… como enrolamos nossas mães… kkkk…
    Agora, que seria bom esse avozinho ter deixado algumas pistas da estrada final… evitaria que derrapássemos!! Santa, a senhora sua mãe!!
    Bjks. Célia.

  2. Querida Carla,

    Que texto maravilhoso. O tema da morte é sempre carregado de tensão, mas você o abarda de maneira leve, interessante e lúdica. Vou recomendá-lo em minhas aulas de escatologia…

    Esteja bem!

  3. Muita criatividade e descontração num tema nem sempre abordado por uma ótica engraçada. Geralmente as pessoas costumam abordar apenas o lado mórbido e tétrico.
    Pode ficar sossegada que eu não conto para sua mãe!!!

    bjos

  4. Olá Carla, e que tudo esteja bem contigo!

    Com certeza a morte não é tão importante, não tanto quanto estar vivo!
    Parabéns por mais este belo escrito por cá narrado, sempre com este teu estilo, nos conta sobre um assunto de que tantos evitam comentar, porém com teu estilo adiciona uma boa dose de humor, principalmente na frase. Se eu morrer, minha mãe me mata!
    Com sensibilidade faz a seriedade parecer divertida, por este motivo gosto deveras de vir por cá ler-te.
    Obrigado por compartilhar teus escritos sempre tão encantadores, também pelas visitas que sempre me faz, e assim eu deixo meu desejo que você tenha sempre em teu viver esta intensa felicidade, abraços e até mais!

  5. Pode contar comigo, minha amiga, eu sou muito discreta, não contarei nada para sua mãe!
    Mas a você tenho que dizer, tem mesmo que ser… : Uma verdadeira delícia!
    A D O R E I !!!

    Quanto a negociar com a morte, não dará mais resultado negociar com a vida? Esta é um bocado mais complicada…precisa ser tratada com mais jeitinho.

    Um grande abraço, e parabéns. Beijinhos

  6. Minha querida

    Como sempre ler-te é maravilhoso, mesmo falando de morte, que para muita gente é “tabu”, mas é o mais certo que temos, só não sabemos quando.
    E…não conto nada para a tua mãe.

    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

  7. Oi, Carla!
    Vida, morte e tempo são os maiores mistérios que existem, na minha opinião. E tratar dos mistérios de forma que nos diverte muito é a sua especialidade.
    Um abraço!

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