Ofício de Mestre: a cultura como legado

A formação manifesta-se na forma integral do Homem, na sua conduta e comportamento exterior e na sua atitude interior. Nem uma nem outra nasceram do acaso, mas são antes produtos de uma disciplina consciente.

(Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego)

 

O contemporâneo não deixa de se compor como uma época confusa, tomada por concepções contraditórias e paradoxais. A própria compreensão de avanço e desenvolvimento contempla e denota claros equívocos. Há uma forte tendência em se reduzir a concepção de desenvolvimento ao mero acesso ao mercado de bens de produção e consumo, como se uma sociedade desenvolvida fosse aquela na qual se pudesse comprar e consumir. Ora, o acesso democrático aos bens de consumo não deixa de representar um avanço social, na direção da construção de uma sociedade justa e equânime. No entanto, é preciso que a sociedade aspire e almeje, sobretudo, a bens nem sempre tangíveis. Neste campo, situa-se, por exemplo, a elevada formação cultural. Assim, desenvolvimento configura-se principalmente como possibilidade de humanização, como participação no legado civilizatório, como acesso à produção cultural dos povos.

Eis o ponto crucial, nevrálgico, o nó górdio de toda existência: o fundamental consiste na máxima realização das potencialidades do humano. A existência como jornada rumo à humanização. As potencialidades, possibilidades da vida, revelam-se no processo de humanização, por meio da criação cultural. Os bens materiais, a vasta produção de objetos e coisas, devem assumir a condição de meros meios, instrumentos, nunca finalidades. O objetivo almejado deve ser sempre o refinamento cultural, a humanização.

Tal concepção não deixa de colocar em relevo e destaque a missão, o papel da educação para a edificação e consolidação de uma sociedade na qual os bens mais relevantes – a produção cultural – passem a pertencer a todos os indivíduos. Neste ponto, todas as instituições devem concorrer para a educação, especialmente dos jovens. Mas cabe a instituição escolar a precedência de educar. Assim como todas as profissões também devem zelar pela formação humana, no entanto o professor é o responsável primeiro por tal tarefa. À instituição escolar e ao professor competem, sobretudo, a missão de educar, fornecer os meios para que o humano se desenvolva, expandindo, explorando e realizando suas potencialidades demasiadamente humanas.

É preciso analisar então qual o modelo de instituição de ensino, bem como qual o perfil professoral que a sociedade necessita e almeja. No que toca à instituição, ao menos, três dimensões se colocam em evidência: a estrutural, a concepção pedagógica – a fundamentar o cotidiano educativo da instituição – e a qualidade dos profissionais – este último aspecto novamente remete à questão do professor. Especificamente, sobre a atuação do professor, é preciso também se considerar três grandes aspectos: a qualidade da formação, o dinamismo como líder e a perspectiva ética da docência.

A dimensão estrutural da instituição de ensino assume importância como aspecto e elemento objetivo no processo de produção de conhecimento. O ambiente da sala de aula, os recursos multimídia, o acervo da biblioteca, os espaços esportivos etc., desvelam-se como instrumentos facilitadores a serviço da formação. Mas é preciso ressaltar que toda estrutura institucional configura-se apenas como meio instrumental, a favorecer as ações pedagógicas. É sempre possível se pensar ambientes com estruturas simples, sem muitos recursos nem sofisticações tecnológicas. Ambientes assim acabam por exigir respostas e propostas mais criativas por parte dos professores.

A concepção pedagógica configura-se como dimensão fulcral, a delinear a própria proposta formativa da instituição. É fundamental que a perspectiva pedagógica tenha como centralidade a pessoa humana, a contemplar dimensões afetivas, emocionais e intelectivas, racionais. O caminho pedagógico institucional deve vislumbrar formar o ser humano inteiro, em sua complexidade, articulando conhecimento teórico, análise crítica e posicionamento político. A base pedagógica estaria alicerçada na tríade ver, julgar e agir, sendo a dinâmica do ver consubstanciada na capacidade de perceber e compreender a realidade e suas contradições; a dimensão do julgar compondo-se no discernimento crítico e ético; a perspectiva do agir configurando-se no engajamento político, no exercício da cidadania. O método pedagógico deve estar estruturado, sobretudo, na dinâmica da pesquisa, da busca, da descoberta, da investigação.

A questão da qualificação do professor é um ponto fundamental. O professor colocar-se-á como portador de uma policompetência. Isso não significa que o professor deve saber tudo e sim que deve estar aberto para a realidade complexa do conhecimento. O conhecimento complexo contempla a busca por um diálogo constante com as diversas áreas do saber. A perspectiva da complexidade parte da compreensão de que realidade é como uma teia, na qual todos os fios estão articulados, entrelaçados. O conhecimento não pode ser entendido como algo estanque, fragmentado e desarticulado.

Outra dimensão relevante a se desdobrar da atuação do professor destaca-se em seu papel de líder. A liderança do professor passa pela dinamização das aulas e por sua capacidade de entusiasmar seus alunos. O professor – como mestre e líder – deve conduzir os alunos no árduo caminho de aquisição e construção do conhecimento. É preciso que o professor assuma a dimensão de liderança, balisando os processos em sala de aula. A liderança do professor não deve significar, em hipótese alguma, a anulação do protagonismo do aluno. Como líder servidor, o professor é aquele que incentiva, acolhe, orienta, acompanha possibilitando que o aluno se lance, projetando-se para novas possibilidades diante do conhecimento.

A dimensão ética da atuação profissional docente descortina-se por meio de uma postura comprometida e engajada, com profundos desdobramentos políticos. A ética não se faz presente apenas no cumprimento de responsabilidades profissionais – o prévio preparo de aula, a assiduidade, a orientação criteriosa –, mas alcança e contempla também o senso de responsabilidade diante dos rumos e diretrizes sociais. O professor constitui-se como sujeito que reflete, pensa, discursa, escreve e articula, acenando para formas cada vez mais democráticas de vida em sociedade. É evidente a contribuição social do professor, cioso das implicações políticas de seu ofício de mestre.

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Adelino de Oliveira é mestre em Ciências da Religião, professor do Colégio Salesiano Dom Bosco e da Faculdade Dom Bosco de Piracicaba.

6 thoughts on “Ofício de Mestre: a cultura como legado

  1. Análise feita com profundidade e propriedade sobre a formação pedagógica e cultural, a consciência social, as virtudes e qualidades humanas necessárias e importantes de um mestre. Percepção de quem acolhe em si a divina missão de ser um mestre por ofício. Parabéns Mestre Adelino!

    1. Prezada Zilma Bandel,

      Agradeço pela possibilidade de diálogo sobre um tema tão fundamental. É preciso que se resgate o lugar de precedência do professor, que tem uma missão tanto ética quanto política.

      Esteja bem!

  2. Parabéns pelo artigo professor! Suas ideias são sempre muito pontuais e esclarecedoras. A tríade do ver, julgar e agir, a qual elucida, faz-se fundamental ainda mais nos dias de hoje. É preciso repensar a dialética educacional e a estrutura pedagógica da instituição escolar.

    Grande abraço,

    Neriane.

    1. Estimada Neriane,

      Obrigado pela interlocução sempre qualificada. É fundamental que se destaque a dimensão política do ofício do professor. É preciso inclusive que se evidencie a responsabilidade ético-política também das instituições de ensino, que não podem ser compreendidas como meras empresas.

      Esteja bem!

  3. Nesta época em que os pais mal têm tempo para educar seus filhos, temos sorte de que ainda existam professores bem formados e conscientes como você, Adelino. Ótimo texto! Abraço!

  4. Estimada Carla,

    Vivemos de fato em um tempo enlouquecido… O tempo nos escapa… acompanhar o desenvolvimento dos filhos é quase um privilégio… A instituição escolar acaba tendo que suprir ausências e laculas. Por isso precisamos cuidar melhor de nossas escolas e olhar com mais zelo para os que assumem a missão da docência.

    Esteja bem e obrigado pelo carinho.

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