Campeão

Não que fosse bravo. Só raivava nos dentes o de perseguir o que por gato se desse. Perseguir e matar. No demais, era o mimoso de bochechas pretas: bodogue, na língua do povo. Deitado no rente à varanda, descansava, descansoso, canino escapado no céu fora da boca. As patas brancas que nem que meias, o corpo de tigre riscado de preto-terno-marrom. No costume, ficava que era um tudo sempre por ali, espachado e pesado, na área da casa, à espera do nada que vinha com a surpresa dos desacontecidos das tardes.

– Esse morde! – diziam.

Mas o bicho, no pé das gentes, virava que virado e mijava de barriga pra cima.

– Que morde que nada. É um doce que só. Nem de guarda serve – trucava o dono.

E em desagravo, mesmo, era só não ver rabo gatuno vizinho. Se não, rodava na corda, endemoninhado. Na rotina sua de cão, era o molosso emborcado: patas no ar, baba dengosa no de ponta-cabeça, sonhado. E nos ares dos sonhos seus, o sempre mesmo corre-que-corresse, lentoso, a perseguir bichano-vizinho no fuça a fuça. De sono em sonho era assim, sempre, sempre o mesmo pega-que-pegasse em encalço desacorçoo de latidos e miados. Até chegar que, na azuada da desacorçoação, ainda meio que dormido, o bicho levantava a cabeça em sobressaltos de arregalar os olhos, a conferir o safo no alto do muro.

– Se pega mata!

– Que mata que nada. O bicho, de pesado, até sua dormindo.

Em distância medida, precavido e seguro no seu no entanto, o bichano sorri no de canto de olho, cara entre patas, rabo a escorrer na parede. Prudente, ronrona sua asma briosa e serena, a exibir a vida que de sete em sete se refaz. E na espera, aguarda o sono profundo da fera bochechuda – a liberar passeio em varandas alheias. Então, temerário que só, e com o inimigo adormecido, zanza peludo pela soalheira encoberta sob as árvores. Mas se se faz sinal, o menor sinal do despertar da modorra canina,  patas e unhas, de pulo em pulo, raspam-se pro alto do muro. Sempre em tempo de conforto, a se por deitado e chegado antes de o vizinho abrir os olhos remelentos.

– Ai, que se pega mata!

Entre desacordos e acordões, no derradeiro dos dias,  as gentes esperava era há tempos o que a vida, em provável, já poderia ter feito dos dois. E foi assim que,  no ir e vir de mal dormidas declinações caninas, se deu o erro do gato. Pulo frustrado, foi a unha cravar-se em falso no muro, escoando o miado de cheio e cheiro em diante cambalhota junto ao fuço-bodogue que dormia. Ao ver-se assim, num quase que comido instante, crispou num zás-que-de-repente suas costas de gato lambido. Foi um segundo? Não mais. O que se viu se consumiu veloz. No cheiro da caça, abriu os olhos a fera, vermelhos de sangue felino.

– Ai, que agora nem salvesãofrancisco dá jeito! 

E o povo fechou com as mãos um dos olhos – que é o modo como a massa das gentes disfarça a expectativa que se tem das desgraças alheias. 

Pois foi. Foi o de não se esperar.

Diante de espantosa aflita vizinhança, fez o bodogue o de sempre, costume: abriu logo os olhos, baboso e lento. Vendo o gato diante de si, pôs-se crente que dormia outra vez um daqueles sonhos de pega-e-corre. E no estalar das pálpebras, cerrou novamente as pestanas. Nem mesmo viu o cisco bichano se levando de volta para o muro: seguro e seco, mais asmático que nunca (agora só com uma vida). E é fato que não se pode negar a dita de que o gordo até que abriu novamente as vistas, só para conferir se mesmo sonhava. Mas no ar, nada – nem cheiro de gato – que o pobre já se aninhara alta fortaleza.

– Pega, não. Pode as gentes por em sossego os bigodes – descansou o dono.

 Para não perder a maneira, o cachorro ainda que pôs mais uma vez a visão no que se fez – num só de repente – gato e muro. E ao ver o bichano sorrindo (de aflito-disfarçado), foi o Campeão virando de peito para cima, naufragando no ladrilho da área descoberta, cotó querendo ganhar chão, a sonhar novamente, dormido, com um sono que lhe trouxesse melhores sortes.  

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Alê Bragion dirige o Diário do Engenho

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