Águas de dezembro, de janeiro, de março

São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração

Águas de marçoTom Jobim

 

Vida. Associação primeira com água. O noticiário nos faz saber de casos de pessoas que sobreviveram a acidentes, catástrofes, graças à proximidade da água. Nossa cidade surgiu às margens do nosso maior cartão postal: o rio Piracicaba, que nos enche de orgulho. Ele me remete a minha querida e distante Recife, também cortada por rio, na verdade pelos Capibaribe e Beberibe, que sempre me encantaram com suas pontes, algumas herança dos holandeses que por ali viveram. Pontes por onde, inúmeras vezes, passávamos eu e  minhas colegas de escola em gostosa algazarra juvenil.

Quantas lembranças trago no coração dos enfeites de Natal colocados no rio! As lâmpadas refletidas em suas águas eram hipnotizantes, inundavam meus olhos de menina com tanto brilho e tanta beleza. Contudo, este precioso líquido também ganha outras associações: enchentes, transbordamentos, alagamentos, tragédia. E nada disto é novo. Ainda no meu tempo de infância convivi com as cheias, como chamávamos, e com seus flagelados. A cidade engolira o espaço dos rios com suas pavimentadas, movimentadas, mal localizadas ruas. Os leitos cobravam seu espaço tão sorrateiramente roubado em nome da civilização e do crescimento populacional. Ficavam cheios. Carregavam o turbilhão daquela tão essencial, mas agora assustadora água. Transbordavam.

A chuva, em diversas ocasiões, caía copiosamente. As calhas já não suportavam o volume das águas. O que era feito do povo que tanto se orgulhava dos rios que cortavam a cidade? O que se poderia esperar? Flagelados. Minha adolescência foi vivida, ano após ano, com a sofreguidão de ver aqueles escravos da modernidade a reclamarem dos recifenses o espaço que lhes cabia naquele latifúndio. Do Recife vitimado pelas enchentes não ouvimos mais falar. A barragem de Tapacurá parece mesmo ter posto fim a todo aquele sofrimento. Mas o que dizer das tragédias atuais? Quando poderemos voltar a celebrar a chuva, sorrindo com a faxina que São Pedro está fazendo no céu?

Nosso desejo é que o rio Piracicaba, onde o peixe para, seja tratado com todo o respeito que lhe é devido e que a solução do transbordamento não tarde, para celebrarmos com o poeta: São as águas de março fechando o verão/É a promessa de vida em teu coração

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A autora

 

 

 

Suzane Lindoso é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Piracicabano

 

(foto: Alê Bragion)

14 thoughts on “Águas de dezembro, de janeiro, de março

  1. Mana, mais uma vez parabens por sua pena tao elaborada e que nos faz meditar em tudo que esta acontecendo com a natureza que Deus nos deu perfeita e que o homem tende a destrui-la.

  2. Sabe Sú, quando me mudei de Pira umas das coisas que me deixava triste é que não mais viria o rio diariamente.
    Morando do outro lado, me acustumei a transpor a ponte admirando o rio para ter acesso ao centro da cidade, e isso foi feito durante 30 anos….
    Realmente, nosso rio deve ser tratado com respeito, a cidade de Piracicaba deve ser tratada com respeito, haja vista seu grande valor cultural. Como canta a banda Os Pamonheiros (banda fantástica de Piracicaba) “E lasquera”
    Parabéns pelo texto.
    Um grande abraço.
    Cláudia.

  3. Querida Suzane,
    Parabéns pelo texto, água tão essencial para nossa vida , mas tão destruidora quando quer ser pelas tragédias que ocorrem no mundo.
    Nosso carnaval foi bom! sentimos muita falta de vocês, do riso , do banho de mar.. (água) e de tudo …..
    beijos da cunhada. Saudades!
    Sandra

  4. Belas palavras Suzane, gostaria eu de ter o dom de escrever como você, somente por um unico minuto apenas para te dizer o quanto gostei do seu texto, meus parabéns, você escreve o que muitos gostariam de falar, mas por um certo receio se calam, meus parabéns mais uma vez e espero ler mais e mais.

    abraços
    xepa & marta

  5. Obrigada, Xepa e Marta. Suas palavras me encantaram e se literatura serve para algo pode ser para nos completar quando o grito ou a palavra fica engasgada.
    Um grande abraço.

  6. Sensível, coerente e essencial para nossa reflexão.
    Ah, se todos aprendessem com a literatura e não com a televisão…aí sim, teríamos um Brasil melhor. Parabéns, Suzane!

  7. Obrigada, Flávia, por suas palavras. Espero que possamos espalhar sementes para que o gosto pela leitura floresça.
    Façamos nossa parte, não?
    Um abraço fraterno.

  8. Parabéns Suzane, mais uma vez seu texto nos encanta e nos remete a lembranças também significativas e saudosas da nossa infância e adolescência. Rio Santa Maria, lindo, águas profundas, abundantes, banhavam a nossa cidade natal, Rosário do Sul/RS. Muitas pescarias utilizando botes de madeira, manobrados pelo nosso pai. Muitos banhos de praia, etc…Agora não passa de um córrego! O rio perdeu o seu espaço, parece que cansou de resistir e desistiu. Será que foi isso que aconteceu? Não sei, mas quando trago à memória a alegria de ver o rio transbordando no passado, a tristeza chega ao coração. Compartilho com você:”Vida. Associação primeira com água”.
    Um forte abraço

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