Verdades de Argila

argilaSeres humanos precisam de lembranças como ceramistas precisam de argila. Nosso reservatório de memórias é um quarto escuro onde guardamos experiências de diferentes matizes (aquele pôr do sol em bela companhia, o verde gritante de periquitos em revoada, o fantasma cor de medo que nos assombrou um dia), densidades (a delicadeza da seda, a fofura da lã ainda na ovelha, a espessura doce do mingau de aveia), cheiros (perfume de musgo em parede fria, terra molhada lá longe quando a chuva anda por perto, cheiro de sol nas roupas do quarador) e sabores (o gosto de saudade na batatinha frita que vovó fazia, o amargo do remédio que se toma por amor a quem nos ama, o doce do beijo roubado).

Coletamos lembranças pelas barrancas da vida e, com elas, moldamos nossas verdades como o ceramista conforma o barro à imagem e semelhança de seu criativo saber. Reunimos memórias diferentes, amassamos o passado até se tornar trabalhável, retirando impurezas inconvenientes a nosso projeto e, às vezes, umedecendo a mistura com lágrimas de alegria, tristeza ou poesia. Modelamos lembranças deixando impressões na verdade inventada que, então, vai ao forno de nossas paixões, onde queima e requeima até solidificar-se.

O ceramista, entretanto, percebe a diferença entre a argila e o objeto criado ao passo que nós chamamos de lembrança as úteis “verdades” que fabricamos para embelezar ou simplificar a vida. O passado é complexo demais. Tem muitos acontecimentos que jamais compreenderemos por inteiro. As pessoas, além de complexas, mudam com o tempo. Precisamos simplificar pessoas e fatos para calcular nossos próximos passos. Isso até funciona se soubermos a hora de jogar ao chão as “verdades” antigas que não servem mais, estilhaçando convicções incorretas.

Em um mundo mutável, verdades são provisórias e deveriam ser mantidas longe de paixões solidificadoras. Só assim continuarão maleáveis como deve ser o que se pretende eterno.

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carlicatura Carla Ceres

 

 

 

 

 

 

Carla Ceres é escritora

 

 

22 thoughts on “Verdades de Argila

  1. Estimada Carla Ceres,

    Seu texto me remeteu a tantas memórias, histórias vividas em um passado que já não volta. Há um filósofo grego chamado Epicuro, que nos ensina que o relembrar é uma maneira de se viver a experiência novamente, sentindo o prazer de outrora. As mudanças, transformações de fato acontecem, mas, em nossa complexidade dinâmica, há sempre algo de nós mesmos que permanece.

    Esteja bem!

    1. O engraçado, Adelino, é que, para escrever esse texto, fui me lembrando de tantas coisas que praticamente revivi um passado ideal. Bom saber que ele teve um efeito semelhante em você. Abraço!

  2. Nossa Carla sabe o que lembrei lendo esse texto? Do cheiro da arvore 7 copas que pra mim cheira brincadeira e amizade! Que saudade me deu! Brincar na rua, não pensar em dinheiro…
    Amei ler isso hj, me fez bem!
    Grande beijo!!!

    1. Que legal, Camila! Na casa da minha avó, tinha uma arvorezinha que dava umas flores brancas e azuis, muito cheirosas. Eu nunca soube o nome da planta, mas aquele perfume é o meu cheiro de infância protegida. Aquela casa era meu refúgio. Beijos!

  3. oi Carlinha,

    costumo dizer que não sabemos viver sem a memória olfativa,
    e apesar da nossa vida estar em constante transformação,
    não consigo esquecer o cheiro do macarrão fresco,feito em casa e esticadinho sobre a mesa da cozinha da minha avó,
    que enquanto esperava pela água ferver,secava um pouquinho…
    doces lembranças você me proporcionou…

    beijinhos

  4. “Reunimos memórias diferentes, amassamos o passado até se tornar trabalhável, retirando impurezas inconvenientes a nosso projeto e, às vezes, umedecendo a mistura com lágrimas de alegria, tristeza ou poesia. Modelamos lembranças deixando impressões na verdade inventada que, então, vai ao forno de nossas paixões, onde queima e requeima até solidificar-se”.

    Sem comentários – Isso vem de encontro com que ando precisando!

    Obrigado

  5. Carla, este texto é cheio de sabedoria. Como um poço de onde se pode tirar mais água cada vez que se chega a ele. Vale a pena guardar e reler muitas vezes.
    Adorei!
    Beijo!

  6. Ah! Carla! Que lindo o seu texto… nostálgico e ao mesmo tempo verdadeiramente original! Retorno viajei por esse desvio na estrada da minha vida!
    “O tempo não comprou passagem de volta. Tenho lembranças e não saudades.”
    Mário Lago
    Bjs. Célia.

  7. Olá prezada Carla, e que tudo permaneça bem contigo!

    Um texto primoroso, como sempre tem postado por cá. Não uso chapéu para poder tirar por você, mas, após ler tão verdadeiras palavras, elaboradas de maneira a nos remeter as nossas saudades, sem deixar de dizer a mensagem principal!
    Parabéns Carla, por mais este intenso texto!
    Com certeza devemos sempre tentar processar o que vamos levar para sempre, e somente podemos fazer isto quando reconhecemos que antigas convicções sequer trouxeram benefícios a ninguém mais que nossas lembranças mal acomodadas!
    Ninguém é de todo correto da mesma maneira que não se considera deveras errado!
    E assim sempre após este prazer de ler teus escritos me vou e deixo a você meus agradecimentos por tuas visitas e comentários por lá, e também para que teu viver seja sempre de intensa felicidade, abraços e, até mais!

  8. Sem palavras, Carla… a não ser as palavras necessárias para declarar a falta de palavras! Você se dá bem no humor, na poesia, na prosa poética. É sempre um prazer desfrutar da sua verve literária. E perdoe a minha suposta falta de palavras… beijos!

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