Sob o signo de Francisco

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Também te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja.

Mt 16,18

Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas…

Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças e servi-o com grande humildade…

Francisco de Assis, Cântico do Irmão Sol

A dimensão religiosa alcança o que há de mais profundo no humano. Por isso a religião opera por meio dos símbolos. O símbolo religioso conecta, liga, estabelece comunicação entre a realidade divina, transcendental e a realidade humana. O símbolo assume a função de revelar, remeter a uma realidade ausente, maior, transcendental. O símbolo pode ser compreendido como uma lente que permite ver o que sem ela não se vê. A experiência religiosa descortina-se como profundamente simbólica.

Neste caso, o campo religioso deve ser interpretado, compreendido em sua riqueza, profundidade simbólica. A própria mentalidade bíblica está tomada por fecundas referências, expressivas representações simbólicas. A narrativa de um acontecimento, a escolha e definição de um nome, a moldura de uma cena, a gestualidade, a ritualidade de uma ação se compõem, no universo bíblico, como realidades permeadas por simbolismos. Aliás, a não compreensão dessa dinâmica estrutural, redacional do texto bíblico tem sido a fonte de tantas visões, leituras equivocadas, redutoras, fundamentalistas, a gerarem discórdia, intolerância.

Interessa-nos particularmente a simbologia que reveste a atribuição do nome no contexto bíblico. Na mentalidade da Sagrada Escritura, o nome revela, designa o destino, a missão. Paradigmático é o nome que o próprio Jesus Cristo atribui ao apóstolo Simão, no momento em que este faz sua contundente profissão de fé. Ao chamar Simão de Pedro (Kefas, em grego) Jesus define e revela a missão que é confiada a Simão. Mais do que pedra dura, inquebrantável, kefas remete, representa gruta, lugar de proteção. Simão, agora como Pedro, símbolo da Igreja nascente, tem a função de ser instância que acolhe, protege, abriga. Eis a missão última, fundamental da própria Igreja. Ao assumir o múnus petrino o Papa contempla fundamentalmente a missão do próprio apóstolo, a representar a razão de ser da Igreja: anunciar Jesus Cristo, o Divino Salvador, sendo presença, lugar de esperança, que ampara, cuida, asila, protege, guarda, conduzindo o ser humano à salvação. Sem a Graça, o humano perde-se em estado de desespero, desamparo. Sob o símbolo de Pedro, o Papa, todo papa, incorpora, representa a missão da Igreja.

Ao ser ungido Papa, o cardeal Jorge Mario Bergoglio assume o nome de Papa Francisco. Além de Pedro, o novo Papa quer ser também Francisco. A escolha do nome novamente indica, sinaliza, revela a concepção, direção simbólica da missão deste papado. A força impetuosa, transformadora do nome Francisco guarda longa tradição na história da Igreja. Sob inspiração, impacto, signo da missão que se encontra por trás do nome Francisco pode-se tecer algumas conjecturas sobre a via do papado que se inicia.

Francisco é primeiro, e antes de tudo, o pobrezinho de Assis. O santo peregrino, sem posses, sem onde reclinar a cabeça, que abraça a pobreza, em uma vida de total despojamento e desapego, entregando-se, confiando-se plenamente a Deus, no serviço ao próximo, na comunhão com toda criação, a manifestar o amor do próprio Criador. A imagem exemplar, impactante de São Francisco sintetiza, contempla a profunda experiência de renovação, conversão radial ao Evangelho. Na singularidade, beleza, profundidade, complexidade da figura de Francisco, talvez pudéssemos contemplar, vislumbrar três eixos, pontos fundamentais, a delinearem um novo jeito de ser Igreja, compondo um vasto movimento de renovação espiritual, pastoral, litúrgica, hierárquica.

Sob a ótica de Francisco, a vida, existência é plenamente assumida como dom, que deve também, na gratuidade de todas as ações, manifestar-se como doação a Deus, ao próximo, ao mundo. O despojamento radical, a renúncia a todos os bens, representa a total entrega de Francisco, a solidariedade maior com todos os irmãos menores, a sofrerem todo tipo de privação. A pobreza de Francisco revela-se como fortaleza em Deus, na solidariedade irmanada com toda criação. Seus pés, sempre calejados, sofridos, tocam a terra, o chão, peregrinam, levam o amor, a redenção a todos seus irmãos.

Em São Francisco, a comunhão com a criação revela uma dimensão profundamente ecológica, onde toda criação passa a ser compreendida como sagrada, reflexo, manifestação do próprio Deus. A intensa comunhão com a natureza permite, possibilita a Francisco acolher a dinâmica da vida em toda sua complexidade, vivendo as dores e as alegrias do existir.

Desvela-se ainda em Francisco uma ousada compreensão de missão evangelizadora, pautada no caminho do encontro, da tolerância e do diálogo. Rompendo com a lógica de violência e força – própria das Cruzadas –, a postura de serena paz e compaixão de São Francisco é ilustrada em seu histórico encontro com o Sultão, abrindo um caminho de aproximação e diálogo com o mundo islâmico.

Sob o signo de Pedro e também de Francisco, o Papa Francisco, pode apontar, abrir novos caminhos para a Igreja. A experiência de uma origem Latino-americana, pode enriquecer, aguçar a sensibilidade da Igreja, tornando-a mais atenta às duras situações de carência material e espiritual, a se configurarem como ofensas, agressões à criação divina. A vivência em uma América Latina marcada, definida pela diversidade cultural, com a miscigenação dos povos e o sincretismo religioso, também se compõem como um precioso, fundamental aspecto, a ampliar os horizontes pastorais da Igreja.

Herdeira e portadora da profunda mensagem de Jesus Cristo, a Igreja é desafiada a responder, em fidelidade com sua missão, às demandas do mundo contemporâneo. Sem fazer concessões do vasto, rico legado da tradição cristã, o Papa Francisco simboliza um novo tempo de semeadura da Boa Nova do Evangelho, saciando a sede e fome de vida plena que toma a humanidade. Pensamos que o Papa Francisco possa rememorizar as experiências de São Francisco, encarnando a profunda bondade, acenando para todas as esperanças, devolvendo o otimismo, o espírito gregário ao homem, entoando toda a canção gloriosa, recompondo o humano, a cultura e o natural como unidade divina.

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Adelino Francisco de Oliveira é professor universitário, mestre e doutorando em Ciências da Religião.

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– foto: Alê Bragion

 

8 thoughts on “Sob o signo de Francisco

  1. O simbolismo se coloca acima do senso comum,portanto, pocuos tem o entendimento de perceber que a escolha de um nome e um número revela muito mais que frases e discursos. Que nosso Papa Francisco Primeiro seja de fato o primeiro Francisco e Francsico primeiro.
    Fico torcendo e compreendendo a necessidade desta simbologia representar a ação do nosso papa.
    abraços,
    professor josé demarco

  2. Olá Adelino.

    A sociedade do espetáculo, como você bem apresentou no texto anterior, representada pela atividade midiática diante do conclave, para a qual somente interessava os aspectos de cunho mais sensacionalista (torcidas pela nacionalidade do novo papa, revelações de disputas e conchavos, enumeração de escândalos e práticas condenáveis de eclesiásticos e seus defensores, etc etc) não deixou de fazer as suas especulações em torno do nome do futuro papa, sempre fazendo associações com homenagens a papas mais recentes, carismáticos ou nem tanto, nomes mais utilizados, ou outro aspecto mais fútil.

    Da mesma forma que não se relevou tanto a profundidade e as reais intenções do inovador gesto da renúncia de Bento XVI, e as consequências que ele deveria induzir nos membros da igreja, desde a cúria romana ao mais longínquo participante de toda e qualquer comunidade católica, também não se explorou a escolha do nome pelo recém-eleito Francisco, e de que maneira essa escolha pode simbolizar uma possível resposta do novo representante da igreja aos desafios que podem ser depreendidos do gesto de seu antecessor.

    Confesso que não nutria muita simpatia pelo Cardeal Ratzinger. Talvez como um reflexo da atividade numa comunidade de base, pela efervescência das propostas e conceitos da teologia da libertação – muitas vezes não assimilados com a devida profundidade – e a maneira como essa prática foi combatida e esvaziada pela Cúria romana, em especial pelo silêncio imposto pelo Cardeal Ratzinger a algumas vozes que admirávamos aqui… Confesso também que não conhecia muito do seu pensamento como teólogo. Mas a atitude dele, ao renunciar, e pelas motivações e intenções que domonstrou ou deixou entrever em seu gesto, acabei mudando minha visão de sua postura.

    Agora, como você, e diferente talvez de muitos católicos que já ficaram satisfeitos com a aparente simplicidade e carisma de Francisco – que os faz lembrar do saudoso João Paulo II – eu também acredito e espero mais do novo pontífice. Não me iludo com a possibilidade de uma limpeza moral, ética, administrativa, institucional, de forma ampla e revolucionária. Mas espero sim, que sob a inspiração do pobrezinho de Assis, nosso Francisco seja o instrumento que vai trabalhar pelo resgate da instituição que tem por missão amparar, acolher, proteger, reconduzir os cristãos ao encontro com Deus.

    Grande abraço,

    João Batista

    1. Estimado João Batista,

      A contundência de sua reflexão me faz lembrar dos tempos em que atuávamos tão apaixonadamente na Comunidade Maria Mãe da Igreja. Experienciávamos a Igreja como povo de Deus, distante de disputas de poder, próxima de um seguimento profundo, íntimo de Jesus Cristo. Neste contexto, a Teologia da Libertação foi uma referência fundamental.

      Esteja bem!

  3. Caro Prof. Adelino,

    O recém eleito papa Francisco realmente parece ter um olhar especial e zeloso para com os pobres,no entanto,o fato de algumas fontes revelarem que ele se distanciou,nos anos 70,da Teologia da Libertação,me entristece um pouco…

    Abraço!

  4. Prezado Giovanni,

    De fato o cardeal Jorge Mario Bergoglio não foi um adepto da Teologia da Libertação. Tal postura não significa que hoje o Papa Francisco não possa promover avanços, tornando a Igreja mais próxima e sensível à realidade dos pobres.

    Esteja bem!

  5. Oi, Adelino! São Francisco é um dos meus santos favoritos. O Papa Francisco até que tem mais carisma do que o anterior, mas não creio que ele vá conseguir fazer muito por essa Igreja corrupta que aí está. De qualquer modo, torço por reformas. Parabéns pelo texto!

    1. Querida Carla Ceres,

      De fato a Igreja enquanto instituição carrega limitações difíceis de serem superadas. Mas para além da instituição persiste a dimensão religiosa, a alcançar o que há de mais profundo no humano.

      Esteja bem!

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