O tempo foge, ruge como leão faminto por suas vítimas, assim como a Morte pelas vidas que passam sem dar o devido valor à sua existência passageira. Parece roteiro pronto! Mas a Vida é assim, ciclo de nascimento e morte. Em vários países, esse ciclo se repete, com o cenário do reino de Hades à nossa porta, com piras e piras de corpos em chamas ou a sombra das autoridades que detêm o poder sobre a Vida e a Morte – o poder de Marte, marcial, como um ostinato que bem poderia ser de um bolero, de preferência de Ravel, tocado ao fim de tarde para se contemplar a Criação.
Como se sabe, a música é uma das artes liberais. Tem esse nome porque pretendiam liberar o ser humano para a contemplação das realidades superiores, relativas ao trabalho do Grande Arquiteto do Universo, retratado por muitos pintores como o Grande Geômetra. Essa figura, especialmente, é retratada em diversas catedrais medievais – que também têm em suas proporções arquitetônicas ressonâncias matemáticas e equivalências musicais. Quem quer se aprofundar no assunto pode assista à série “The Code” no Netflix, que retrata várias dessas ressonâncias matemáticas e musicais.
Corpo, alma, música. Não dá pra separar a alma da música da corporeidade da dança, e da materialidade da escultura, muito menos da vocalidade da poesia e da prosa. Toda a Criação canta e louva o seu Criador.
Em tempos de pandemônio, onde cidades perdidas e universos paralelos parecem se encarnar (como o mito moderno de “Setealem”), é um alento ver que o oculto está por se revelar. Não é apenas um ciclo, retomando a ideia iniciada nesse texto, que se repete, com o movimento retrógrado de Plutão tal como aconteceu ano passado, com queda de ministros ou, como há trinta anos, com quedas maiores ainda e impedimentos. É o universo em movimento, mostrando que a música o representa através desse significativo recurso: a repetição. Ela pode ser apenas uma célula, que repetida por outros grupos de instrumentos, e em outras tonalidades, fazem a magia acontecer.
Cânones, como os ostinatos, também repetem – e quando sobrepostos formam colchas musicais divinas, tão divinas, que há sociedades canônicas que se dedicam nessa prática coral comunitária na qual ninguém é maior que ninguém, todos são iguais. Para exemplificar, é difícil não lembrar de “Da pacem, Domine” ou do Aleluia de Mozart – ou da Oferenda Musical de Bach. A prática coral e orquestral, em conjunto, é inviável no momento em que, forçados, experimentamos um estilo de vida isolado totalmente novo, nunca antes vivido pelas diversas culturas, mesmo em outras pandemias, o que me faz pensar que estamos mesmo com outra categoria de espírito, ou demônio.
Como escreveu o pensador estoico e imperador Marco Aurélio, muito do que dizemos ou fazemos não é essencial. Se conseguimos eliminar esses pesos, temos tempo para fazer coisas mais elevadas. Cantemos, toquemos, para elevar nossas almas, como Dostoiévski escreve em sua obra! Que a Beleza nos ajude a salvar o Mundo (não é posição religiosa, mas, pragmática!) e os nossos mundos! Que a regeneração citada por representantes da sociedade se faça em nossas vidas e trabalhos, e que seja pelas Artes, pela Música!
Exorcizar é preciso!
Antonio Pessotti é músico, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (IEL – Unicamp) e professor de Canto e História da Música na Escola de Música Maestro Ernst Mahle (EMPEM).
Belíssimo texto, caro professor de canto!
Belo, reflexivo!