Temp(l)os de quaresma

Temp(l)os de quaresma

Meca. Meus livros na estante, para onde rumo em romaria a todo instante. Ali, ergo colunas que me sustentam – e tanto – e tento sempre abrir espaços de prata nas prateleiras para novas colunas inteiras. Depois, vou tateando o campo, canto a canto, capa a capa, ideando a cada momento a criação certeira de uma (nova e santa) arte de arrumação livreira.

Igreja. Sentir que tenho amigos onde quer que esteja. Ouvir uma história. Puxar um causo de memória. Desafiar a narrativa em recordação. A canção (surpresa) feito conversa, a conversa (presa fácil) feito canção. Alguém que no “Marvada” ergue uma taça (de vinho ou de cachaça), outro que pede um café. E a minha fé na humanidade (fé que anda assim tão resumida) vai sentindo que (será?)talvez viver ainda dê pé.

Terreiro. Amor por inteiro. Nichos de bichos amados, flores num canteiro. A cópula das cúpulas dos copos sobre a pia. A imagem, pela rua, de namoradas e namorados. A Lua. Amizade (que se esforça para ser) de verdade. A singeleza da poesia. A noite, noturnos sonhos, que me invade – sedutora. A força motora do desejo. Lampejos. Intentos impossíveis. Gratuidade de sentimentos. Ser melhor do que se é.

Capela. A luz amarela da vela que mal ilumina a sala. A lembrança do timbre da fala de meu pai. A música de um instrumento de cordas que no ar se esvai. Os acordes primeiros de Luiza, de Tom Jobim. A certeza – ora reconfortante ora triste – de que tudo na vida (como na pauta ou em um desenho) tem um fim.

Reza – para que mais? Sagrado que no cotidiano se refaz.

 


Alexandre Bragion é doutor em teoria e história literária. Autor do livro de poemas “Casa Burguesa sem Chave” e editor do DE.

 

Foto de capa: Samson Katt.

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