Sobre a morte, a vida e a tolerância

 

Sempre que penso na vida experimentada e sentida em sua plenitude – talvez por experiências recentes de vida – a realidade da morte, da partida, ocupa importante espaço nos meus pensamentos. E, no Dia de Finados, acordei acreditando como nunca na importância e alegria de viver e conviver. Veio-me o tema da morte, surrado e repetido em quantidade incalculável. Com atenção, percebemos que, para cada um, essas lembranças, os sentimentos que se permitem aflorar, recebem um olhar peculiar. Hoje, a ideia da morte me faz pensar na vida que, a cada dia, se reinventa para melhor ser sorvida, mais apuradamente ser aproveitada.

Penso na vida convivida com as pessoas queridas que por mim passaram. Quantos conflitos desnecessários, quantos sentimentos negativos guardados sem necessidade. Melhor resolver com um planejamento interior rápido e adequado para cada situação – e voltarmos a uma convivência prazerosa e de boas trocas. Todos têm algo (ou muito!) de bom para nos ofertar. Reflito, hoje, em especial, sobre as quantas alegrias, quantos e tantos bons momentos que as pessoas me permitiram viver. E em quanto elas me fizeram agregar em aprendizado e, algumas vezes através de sofrimento, em crescimento interior. Isso fica forte, com marcas importantes em minha alma. É o que vale. Que bom!

Antes que essas reflexões se tornem algo que lembre autoajuda (longe de mim essa intenção!), gostaria de falar sobre vida lembrando de uma experiência  que foi minha permanência por quase dois anos na Alemanha. Quando para lá me mudei, tive muito medo de não dar certo, de não suportar a vida em um país com tanta diferença climática e cultural – e, além disso, estava eu com minhas duas crianças pequenas. Ouvia coisas terríveis sobre preconceito contra estrangeiros, sobre o excesso de disciplina e formalidade e uma boa dose de mau humor do povo alemão, sobre o horror da pouquíssima claridade nos dias muito curtos, da escuridão no dia e na alma das pessoas. “Você não vai aguentar”, escutava com frequência. Ficava pensando por que não acreditavam na minha capacidade de adaptação, por que me sentiam tão frágil.

O povo alemão tem suas peculiaridades, como todos. Por causa das muitas histórias de guerra, ficaram estigmatizados, com certeza. Mas logo senti a solidariedade alemã quando, depois de duas semanas que chegamos, meu filho amanheceu com catapora adquirida com o contato com o amiguinho canadense que caiu doente no dia seguinte de nossa chegada, e havia sido o primeiro a nos dar boas vindas. Fomos cercados de cuidados e preocupações que logo me fizeram sentir que tudo seria melhor do que me haviam anunciado. Só mais um detalhe: depois de duas semanas, minha filha amanheceu também com a doença. Com isso, meu primeiro mês em Bonn (que era a capital, na época) me fez sentir aliviada e fortalecida para o que teria pela frente.

As crianças passaram a frequentar um jardim de infância onde foram acolhidos com muito amor. A dificuldade de comunicação não existe para as crianças! Brincavam – e isso bastava. E foram rapidamente aprendendo a língua de todo dia, de toda hora. E eu aprendendo com eles. O que aprendi de alemão por aqui foi importante, mas insuficiente para entender e me fazer entender. Sem falar que no bairro onde morávamos havia um dialeto que muito mal lembrava a língua alemã.

Morávamos em um prédio onde convivíamos com bolsistas de pós-doutorado de várias partes do mundo, e com altos funcionários da Fundação Humboldt. Éramos tratados como hóspedes, em evidente e eficiente política de boa vizinhança. Como capital, Bonn acolhia pessoas e culturas de todo o mundo e essa convivência nos acrescentou muito. Éramos convidados para todos os eventos, principalmente culturais, da Embaixada. E algo me chamava a atenção quando assistia aos noticiários: ver governantes (europeus, em geral) chegando em voo de linha normal, carregando sua pasta, acompanhado de um ou dois assistentes. Nem pensar em voo fretado ou caravana de agregados. Aos poucos fui conhecendo melhor meus vizinhos, canadenses, americanos, japoneses, búlgaros… A língua falada, como combinado, era o alemão. Difíceis desafios, incríveis situações.

Uma noite ofereci um jantar em que o secretário geral da Fundação estava presente com a esposa (nossos vizinhos também). Em um dado momento tocou o telefone. Era o presidente alemão querendo perguntar ao secretário da fundação se havia um apartamento vago no prédio para hospedar um matemático indicado para o Prêmio Nobel e sua esposa. Havia. A esposa era cantora lírica e passávamos boa parte do dia com seus exercícios vocais e trinados. Pessoas muito simples e simpáticas.

Havia um apartamento sempre livre para hospedar a viúva do Doutor Werner Karl Heisenberg, prêmio Nobel de Física, que falecera havia pouco tempo. Bem em frente ao prédio morava sua filha e família. Pais e filhos formavam um quarteto de cordas de música de câmara. Era comum termos nossas noites embaladas por ensaios ou apresentações da família para amigos (a sala era envidraçada, tínhamos ótima e bonita visão). A filha era baby-sitter de nossos filhos. Nossos filhos eram cuidados, quando tínhamos algum compromisso noturno, pela neta de um prêmio Nobel! Há pouco fiquei sabendo, através de pesquisas, que a outra filha dos Heisenbergs (tia de nossa baby-sitter) é casada com o neto de Thomas Mann, também Prêmio Nobel, de Literatura. Enfim, coisas de primeiro mundo!

Sempre me surpreendi com as datas que via nos museus, monumentos, igrejas (antiquíssimos) e a maneira com que toda aquela cultura era bem cuidada e preservada. Visitávamos com frequência a casa de Beethoven no centro de Bonn. Maravilha e emoção! Nos fins de semana era comum vermos famílias inteiras passeando vestidas com os trajes típicos de suas regiões. Felizes, orgulhosos de suas origens e cultura! Mas, e tudo de ruim que havia escutado antes de viajar?

Em algumas noites custava a pegar no sono, chorando e querendo ir embora, principalmente nos primeiros tempos. Há preconceito, sim, mas como ele nos pega depende do quanto nos valorizamos. Durante seis meses, mais ou menos, pegavam nas nossas roupas assustados com o fato de aqueles tecidos virem do Brasil. Procuravam, com certeza, penas escondidas. Tudo bem. No comércio, no cabeleireiro e alguns outros ambientes (muitos hotéis e restaurantes aceitavam animais, mas não crianças) a insatisfação e impaciência por estarem servindo estrangeiros eram muitas vezes insuportáveis. No entanto, meus direitos de cidadã eram sempre rigorosamente respeitados.

Suportando tudo porque nunca fui tão respeitada como cidadã, nunca tive à frente dos olhos e à minha disposição tanta cultura e cuidados com a preservação dos bens de uso público (os jardins, na primavera e verão, são lindíssimos, bem cuidados e preservados). Afinal, o calor humano continuava no Brasil à minha espera. Aos poucos, nosso jeito de ser, nossa informalidade educada, conquistou nossos vizinhos (alemães ou não). Passei a ser a confidente de todas as senhoras com que convivia. Achavam que sabia ouvir, tinha uma palavra sensata (quando conseguia falar algo, me fazer entender  e não somente ouvir…) e compreensão para os problemas, com discrição, sem julgamentos. Mérito meu? Não. Problema deles com as dificuldades de se mostrarem afetivamente. Era sempre necessária aquela fachada de pessoa autossuficiente em todos os sentidos. Tristeza, nem pensar! Alegria, na medida certa, graças aos bons vinhos do Reno.

Fui valorizando o muito que havia de bom. Até a escuridão de grande parte do ano era um encanto com as velas (lindas!) sempre acesas. Escuridão nas almas? As pessoas com quem mais convivia, aceitando nosso jeito espontâneo de ser, vinham aliviar sua necessidade de dureza interior em longas conversas de desabafo. E acabávamos todas dando muitas risadas. Comecei a me achar o máximo e feliz, querida. Relevava a vivência de preconceito que em alguns momentos tinha que suportar.

Sinto muitas saudades daquela vida regrada, densa, repleta de novas e boas experiências a cada dia. E essas saudades tomaram conta de mim por conta das conversas e certa agitação dos meus filhos que estão se preparando para ir a Berlim no final do mês de novembro. Talvez o que me tenha feito reviver tudo isso e essa necessidade de colocar no papel, tenha sido também o tema da intolerância que visitou muitas rodas de conversas e discussões em Piracicaba e que, em editorial no Diário do Engenho (A Inquisição Piracicabana) dessa semana, foi abordado com abrangência, sensibilidade e competência pelo editor. Citando Victor Hugo, o editor nos lembra que “A tolerância é a melhor das religiões”. Isso é vida! Em Dia de Finados, lembrança perfeita para uma vida de viver e conviver plenos, e aceitação tranquila da morte como uma passagem.

Cito, para reflexão, um dos mais importantes filósofos e sociólogos contemporâneos, Edgar Morin, 91 anos, em uma entrevista nesta semana em São Paulo: “A unidade humana necessita da diversidade das pessoas. E a diversidade necessita reconhecer a unidade humana que todos temos”. Em tempo: que bom que não me pautei pelos tétricos sentimentos de outros e resolvi viver minha própria experiência na Alemanha. Não voltei antes do tempo. Vivi!

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Zilma Bandel é bióloga, com pós-graduação em citogenética animal. É também a mais nova colaboradora do Diário do Engenho.

 

32 thoughts on “Sobre a morte, a vida e a tolerância

  1. Cara Zilma,

    Seu texto comporta a dimensão de nos convidar a pensar sobre tantos temas fundamentais. A evidente profundidade e sensibilidade o situa muito além da autoajuda (esse risco você não corre)… Mas do que um relato de experiências pessoais é um convite para refletirmos sobre temas universais. Que bela estréia!

    Esteja bem!

    1. Obrigada, Professor Adelino, pelo seu comentário e pelo simpático apoio.
      Leio sempre seus escritos. Gosto demais e aprendo muito com eles. Carregam grande sensibilidade, abrangência, além da profundidade que sua bagagem intelectual proporciona.
      Seu olhar sobre meu texto é de muita importância. Acho mesmo que nele, e sempre, meu foco está invariavelmente na condição humana.
      Abraço.
      Com gratidão.
      Zilma.

  2. Parabens Zilma amiga!
    Um texto gostoso, uma linguagem agradável e bem você. Siga em frente, o começo você já tem e teremos imenso prazer em apreciar suas novas produções. Um abraço carinhoso.

  3. Vou citar um poema do nosso amigo Rubem Alves:
    ” Eu sendo cada vez mais eu , e tu cada vez mais tu, juntos seremos nós”
    É isso meu anjo, e tenha certeza que és para muitos. Esta descrito nas suas palavras sempre elegantes e suaves.
    Beijo grande e sempre “Saudades”

  4. Obrigada queridos amigos Ariadne, Maria Vittoria, Fábio.
    Suas palavras de apoio, incentivo e carinho trazem grande alento para essa estreante atrevida e ainda assustada.
    Beijo carinhoso e com muita gratidão.
    Zilma.

  5. Parabéns ao Diário do Engenho pela escolha de Zilma Bandel como colaboradora desse Jornal.Zilma além de escrever muito bem ,tem uma cultura muito grande e escreve de uma forma que nos envolve e emociona .Parabéns a Zilma por mais esse dom ,entre tantos outros que Deus lhe deu.

    1. Querida amiga, sensível e com quem aprendo muito. Vamos seguindo nossa caminhada, com as trocas possíveis, com o respeito e o carinho compartilhados. Obrigada, Rose.

  6. Prezada Zilma:

    Lindo texto, repleto de paradigmas quebrados. Por isso podemos entender a musicialidade tão expressiva de sua família. Tudo começou lá, bem longe de sua Pátria, quando vocês foram tomados do espírito do lugar – da elevação cultural que promove o fortalecimento interior que fornece um sopro de alento que a música traz.

    Bom conhecer um pouco mais de vocês, o meio virtual vai abrindo também a alma das pessoas! Um grande beijo. Carmen Pilotto

  7. Carmem querida.
    Que bonita sua avaliação. Obrigada pelas palavras que você usa sempre com muita propriedade, talento e competência.
    Além disso, sei que elas trazem também o calor de sua amizade e os valores de um conteúdo humano da melhor qualidade.
    Foi muto importante esse seu olhar sobre meu texto.
    Sou muito grata e desejo sempre muito sucesso nos seus projetos que enriquecem com brilho a vida cultural de Piracicaba.
    Beijo carinhoso.
    Zilma.

  8. Querida amiga Zilma:
    Que bom que compartilhou com seus amigos e leitores essa reflexão tão bonita e profunda. Seu texto delicado e ao mesmo tempo denso nos remete às situações descritas, de modo tão claro e vívido, que é quase como se tais acontecimentos e convívios fizessem parte de nossas próprias memórias. Parabéns! Abraços carinhosos. Lu

    1. Obrigada, Lu. Sua amizade, tão importante para mim, é responsável pelas palavras de incentivo e carinho. Espero poder corresponder nos meus próximos escritos. Conto com sua torcida!

  9. Desde que conheci Zilma França e depois Bandel(e lá sevão anos ou décadas)pude sentir sua sensibilidade ,sua grandeza de alma,sua grandiosidade como pessoa,profissional e amiga.Procurou sempre encontrar o melhor caminho,não só para si,mas e principalmente para o próximo.Inteligente,sensata,honesta assim o foi em todos os momentos de sua vida.Esse texto mostra bem isso:como procurou lidar com as diferenças,usando isso em benefício principalmente dos próximos a ela(haja visto que se tornou até confidente de pessoas de outras nacionalidades.Sempre se norteou pela sinceridade e companheirismo,na família ,na amizade e no conviver com as pessoas.Que belo texto!quantos exemplos de vivência digna e solidária.Agora inicia tentativas por novos caminhos e ,sei,será muito bem sucedida pois faz tudo bem feito: com seriedade,perseverança e vontade de acertar.Quero ler novos textos seus,com toda a poesia e beleza que você coloca em seus trabalhos(mesmo que só os leia virtualmente,como esse).Sucesso na nova empreitada.Tenho orgulho de ser sua amigaUm grande beijo e parabéns

    1. Escrever o que, Anna Lydia, depois desse depoimento!
      Amiga e companheira na Universidade, há muito tempo não nos vemos e você comparece nesse espaço com palavras que carregam muito afeto e emoção.
      Obrigada, querida, pelo carinho com que você sempre me cercou e pelo incentivo.
      Conto com sua torcida para continuar.
      Beijo com carinho.

  10. Olá Zilma!
    Brilhante a sua estreia! O texto tem um prólogo que ambienta e conduz a um estado de concentração, um desenvolvimento sensível e curioso, divertido e tocante. Nos leva a crer que a luminosidade das velas acesas dentro de nós é muito mais poderosa que qualquer escuridão exterior. Parabéns!

    1. Olá, Raul.
      Importante para mim sua leitura e seu sensível comentário deixado nesse iportante espaço, tão bem coordenado pelo Alê. Obrigada pelas palavras elogiosas e de incentivo. Vamos ver o que acontece. Preciso de muita inspiração e dessa luz interior sempre brilhando. Conto com sua torcida.

  11. Cara amiga,

    Este texto é voce. Continue escrevendo, cronicas, lembranças, histórias e tudo o que você tiver vontade.
    Tenho certeza de que você tem muito a transmitir e é certo que os primeiros passos sempre parecem titubeantes.
    Adorei poder ler o texto , que traduz a familia Bandel.
    Abraço,
    Rosangela

    1. Obrigada, Rosangela.
      Sua leitura, sua amizade, sua presença e de sua família na minha vida e de meus queridos,suas palavras elogiosas e de incentivo são muito importantes para mim.
      Acompanhe as atualizações do Diário do Engenho, espaço coordenado com competência pelo Alê Bragion.
      Espero poder corresponder à sua confiança nos meus próximos escritos.
      Abraço com afeto.

  12. Querida Zilma

    Gostei mto de conhecer um pouquinho mais sua vivência pessoal,e esse seu lado especial de lidar com as palavras.
    Experiência de vida é diferente de auto ajuda:você é você sempre
    Estou esperando o próximo
    bjs

    1. Ana querida.
      Que bom que você leu e gostou! Seu incentivo e o carinho de sua amizade me dão alento para continuar.
      Obrigada, amiga.
      Deixo meu carinho com você.

  13. Zilma!

    Com um pouco de atraso, mas ainda em tempo. Maravilha de texto, que nos faz acreditar que a nossa alegria esta na relação que temos com os outros. Parabéns!!

    Abraços do

    Niva Miguel

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