Repensando a sala de estar

Repensando a sala de estar

Eu gosto de memórias. De memórias e de narrativas. E minha memória resgatou a crônica de Cecília Meireles, “Da Solidão”, em que a narradora discorre que ninguém está sozinho, pois para afastar a solidão basta o solitário dialogar com as coisas ou com a história dos objetos ao seu redor: o desenho das cadeiras, a transparência das vidraças. Convida para que amemos o que descobrimos com nossos olhos infantis, como a nervura das madeiras, o grafismo dos azulejos, o esmalte das louças, a voz dos animais. São memórias. Que doce Cecília Meireles.

Resgato também Rubem Braga, que em sua crônica “Ela tem alma de pomba” faz uma defesa da televisão. Foi o primeiro texto que li que faz uma defesa da televisão de uma forma simples e cujos argumentos aceitei. Na primeira parte do texto, claro, o narrador ataca a tevê em tudo o que ela tirou da pessoa: o diálogo em família, a brincadeira na praça, alguma coisa da educação – o aquilo que todos sabem! Entretanto, na segunda parte do texto, devolve à tevê o seu valor quando dá a ela o poder de ser a única companhia do ser solitário, do doente, do idoso, do pai que espera o filho. E a televisão foi redimida. Foi perdoada! São memórias! Que sábio Rubem Braga.

A memória, contudo, não viaja à toa. Sempre há um gatilho. E o gatilho que me levou a essas crônicas foi, claro, a solidão promovida pela pandemia a que fomos submetidos. Em qualquer sítio consultado na internet (detesto usar site), para saber o conceito de solidão tem-se esse sentimento quando a pessoa sente uma profunda sensação de vazio, de isolamento, que vai além de querer uma companhia. Não é por que a pessoa se isola, mas é porque seus sentimentos precisam de algo novo que as transforme. É mais ou menos isso que se encontra sobre solidão. Não sei se é o melhor conceito, mas é o que convém para esta crônica. O que relaciona Cecília Meireles, Rubem Braga e a solidão que nos colocamos na pandemia da Covid-19.

Enfim, desde que começou a pandemia, principalmente em seu início, ficamos submetidos a um período de isolamento social que nos deixou em um estado de solidão. Crio, aqui, o termo estado de solidão. Não sei se existe. Mas quando, de um momento para outro, ficamos privados do trabalho, do lazer, do convívio social e tivemos que ficar em casa, muitos entraram em um estado de solidão, mesmo estando entre familiares – e qual foi um dos remédios doces e suaves para o estado de solidão na quarentena? Qual? Ela! A alma de pomba! E, por meio dela, o compartilhamento da solidão em algumas de suas formas de arte.

Uma delas foram as transmissões ao vivo – as lives – que contam com o patrocínio das grandes empresas e resolveram o problema dos grandes artistas, dos grandes empresários do setor. Marília Mendonça, Gustavo Lima, Oswaldo Montenegro continuam com suas apresentações em outro formato. Pela televisão – a alma de pomba – por algumas horas nos deliciamos com nosso artista favorito e até tomamos nossa cerveja gelada. Porém, temos a música, o artista, e o setor teve até um certo aquecimento. Mas não podemos deixar de citar os pequenos artistas, aqueles que não têm acesso ao patrocínio para uma transmissão ao vivo. Sabe aquele circo que há meses que não consegue público para meio espetáculo? Então. Também são artistas. Foram excluídos do processo. E a solidão deles é dupla: emocional e financeira. Creio que nosso prazer vem mais da memória que guardamos dos shows presenciais do passado, do que da live em si… pois o quanto de calor humano traz uma live?

E eis que temos, assim, algo novo a ser apreciado. Se antes o belo era a presença humana nos eventos, o tectec da marcação das baquetas do baterista para os demais músicos iniciarem o espetáculo, aquele olhar 42 que gerava improvisos nunca repetidos, porque eram únicos, as deixas nos stand ups que geraram uma piada que faz parte da arte efêmera, tudo isso foi substituído. E o encantador passou a ser um ato solitário, ou quase.  O artista grava sua parte da peça, envia para um estúdio, alguém faz a edição e o produto final é uma grande apresentação como se todos estivessem juntos. E a beleza do show coube à técnica, ou à tecnologia. E isolados contemplamos uma nova arte. Tudo novo. Do grande palco a uma tela de led. Tão contraditória em si mesma. E assim se faz o up grade da alma de pomba, seja no quarto, na sala, na tela do celular…

Mas a solidão na quarentena não foi preenchida só com lives. Outros toques de arte se fazem presentes em diversas formas. Da aposentada que preenche seu dia pintando mandalas, do curioso que faz visitas virtuais a museus, da criança que lê de não importa o quê, do adolescente que arrisca escrever um poema, da mãe que faz trabalho de jardinagem, uma atividade artística resgata uma transformação na alma. Na alma solitária, que na quarentena busca pelos seus pares, também isolado em outro canto.

Em que pese o esforço de nos conectarmos a algo, de nos distrairmos com algo, o fato é simples: seja numa live¸ pintura, leitura, jardinagem… em qualquer atividade, estamos privados do contado humano. Para esta falta ainda há um longo aprendizado a ser feito e não sei se há na minha memória algum registro que possa dar uma resposta. Enquanto ela não vem. Vamos sentido a sua falta e buscando nas artes a sua compensação. Até lá, creio que a doçura de Cecília Meireles e outros também me façam companhia na sala de estar.

 

 

 

 

Elder de Santis é professor e mestre em Educação.

 

 

 


Foto de capa: arquivo EBC. 

5 thoughts on “Repensando a sala de estar

  1. Parabéns Elder por mais essa publicação. Agora, mais do que nunca, está comprovado o quanto o homem é um ser social. A falta que faz o contato humano para aqueles que estão seguindo a risca o isolamento físico e tb para aqueles que deliberadamente não estão.
    E haja mandalas pra colorir! kkkk
    Abçs

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