Precisamos falar sobre a Escola de Música Maestro Ernst Mahle

Precisamos falar sobre a Escola de Música Maestro Ernst Mahle

Um dos privilégios de quem, hoje acima dos 50, cresceu em igrejas evangélicas foi – desde muito cedo – se familiarizar com a música. Diga-se de passagem, algo bem distante das formas de louvor atuais – o comum eram organistas a tocar prelúdios antes dos cultos, o coral que se esforçava para entender melhor e se qualificar para o canto em grupo, as cantatas de Natal que buscavam inspiração na música clássica. Nem sempre o resultado era satisfatório – admitamos – mas a maioria das comunidades conseguia trazer para dentro de suas práticas algo que nem sempre estava disponível fora dos grandes centros em relação ao convívio com uma formação musical mais efetiva. Filhos e netos de evangélicos eram incentivados a tocar algum instrumento e a voz, feita opção para o louvor, encontrava espaço para se desenvolver.

Na Igreja Metodista de Piracicaba – hoje Catedral – também foi assim. O Coral do templo foi criado em 1930, com 20 elementos e um organista, e sobreviveu ao tempo com sucessivos regentes buscando fixar uma tradição de qualidade musical. Há até pesquisadores que garantem ter sido sua fundação bem anterior, ainda de 1896, quando o “Coral da igreja era tão interessante que atraía para si, além de participantes membros da igreja, alunos do Colégio Piracicabano, de confissão metodista e católica, que passavam, dessa forma, a frequentar os cultos.”

Talvez por isso, numa convivência que se fez ao longo de mais de um século com a cidade que também valorizava sobremaneira a música e outras artes em seus melhores tempos, fica tão difícil aceitar e entender o que vem sendo feito com a Escola de Música de Piracicaba pela administração dos metodistas. Fundada pelo casal Mahle em 1953, a instituição foi transferida para o IEP/UNIMEP em 1999, num aceno de confiança daquela família ao compromisso metodista de manter, desenvolver e continuar com o projeto musical originalmente proposto. Ernst Mahle não foi apenas o idealizador da escola, seu professor, maestro, referência para várias gerações de músicos. Mahle é um compositor de vanguarda, reconhecido internacionalmente, premiado e aplaudido muito além dos limites da cidade e do Brasil. E não poucas vezes montou peças que fizeram com que a Catedral Metodista pudesse usufruir do melhor da música com os corais e orquestras da Escola. Não foram poucos os metodistas de origem que se formaram na Escola de Música. Não foram poucos os piracicabanos que se beneficiaram com as bolsas de estudo garantidas a quem não podia pagar e aos talentos ainda nascentes que, anos depois, espalharam-se pelo mundo. Uma convivência e parceria plenas de prazer, de bons resultados, de significativos momentos de arte – a escola formando músicos, a Igreja Metodista usufruindo de seus talentos em seus momentos de fé.

Depois de anos sendo relegada a um segundo plano dentro das novas diretrizes da educação metodista – e vendo um rico patrimônio em instrumentos e documentação musical ir se deteriorando aos poucos – a Escola de Música foi atingida no último final de semana com o melhor do proselitismo religioso que se possa imaginar. Suas instalações foram transformadas em espaço de culto metodista, mesmo que seus alunos tivessem sido afastados nos últimos meses sob argumento de cuidados com a pandemia.

Mas pior que o destino dado pelos metodistas a um espaço sempre dedicado e criado para as artes e a cultura, foi a falta de compreensão da cidade com o que isso representa. Falou-se em intolerância religiosa de quem mostrou sua indignação com o fato. Apontaram-se dedos dizendo que a reação era coisa de “comunistas” e que melhor seria mesmo o espaço transformar-se em igreja do que em bar.

É o triste quadro de uma cidade cada vez mais inculta, ignorante e incapaz de identificar sequer quem é Ernst Mahle e o quanto Piracicaba foi privilegiada com o fato de que seu trabalho tenha sido desenvolvido aqui.  Para além dos muitas homenagens que lhe foram prestadas ao longo da vida, fica a sensação de que tudo aquilo foi mero formalismo e politicagem de ocasião e que poucos realmente se apercebem do quanto a cidade perde com o possível fim da escola que Mahle criou e manteve durante décadas com recursos próprios.

Piracicaba é, hoje, apenas um exemplo visível e palpável de para onde vai o país. De como fazem diferença governos e instituições comprometidas com a educação, a arte e a cultura. De como é possível se perder o que de melhor se teve, sem reações fortes o suficiente para  convencer os indiferentes  a entenderem.  Que o digam os que um dia viveram e se fizeram cidadãos melhores e mais plenos pela orientação e oportunidades que a Escola de Música lhes garantiu.

 

 

 

 

 

Beatriz Vicentini é jornalista.

19 thoughts on “Precisamos falar sobre a Escola de Música Maestro Ernst Mahle

    1. Concordo com você. E saiba que essa sua tristeza também é a de muitos que um dia conheceram e puderam usufruir do que a Escola de Música sempre ofereceu.

    1. Como você, Érica, muita gente não sabe. Então, é preciso que a gente se una e divulgue o máximo possível tudo o que está acontecendo. É o único jeito de tentarmos, juntos, mostrar que a cidade não merece e nem deve abrir mão de tal patrimônio.

    1. O mais triste é isso. Enquanto vários ex-alunos que se formaram na Escola de Música de Piracicaba, e hoje se espalham pelo Brasil e pelo mundo, lamentam o que vem ocorrendo, Piracicaba não parece se dar do tamanho da perda.

  1. Uauh!!! Não entendo como o pensamento metodista pode ser tão retrógrado e mesquinho, inclusive até mesmo em relacionar teologia e música. É triste ver um templo da música de renome internacional, como a Escola de Música Ernst Mahle, virar templo de uma denominação – ou deveria chamar de facção pela traição que faz à sociedade no âmbito da cultura e educação.

    1. Houve um tempo em que a Igreja Metodista professava outras práticas e defendia outros compromissos. Infelizmente, nos últimos anos, a Igreja sofreu uma reviravolta e os fundamentalistas é que hoje a governam. O mais triste é que muitos metodistas que viveram os melhores tempos da Escola de Música e ali se formaram, nada dizem diante deste descalabro.

  2. Essa situação atual da Escola de Música é muito triste para nós todos que nela vivemos, crescemos, aprendemos e apreciamos muita arte maravilhosa. Fica a indignação e a pergunta: o que podemos fazer?

    1. Minha sensação é que a força para algum tipo de solução poderá vir da união dos ex-alunos, professores, bolsistas e amigos do casal do Mahle, que realmente conhecem o trabalho que ali foi desenvolvido. E, naturalmente, pressão sobre os políticos locais, até agora, completamente indiferentes e emudecidos sobre o assunto.

  3. Parabéns, Beatriz, pela lucidez e força do seu artigo.
    Tenho compartilhado no Facebook suas ótimas reflexões sobre essa triste situação.
    Meus filhos tinham a Escola de Música como sua segunda casa.
    Um deles é músico, formado na Uni de Berlim, na graduação e mestrado.
    E, antes dos estudos, foi bolsista na Academia da Filarmônica.
    O mais novo é engenheiro, mas está sempre com seu cello em alguma atividade na cidade, nestes tempos sempre online.
    E minha filha escolheu o coral, agora na Esalq.
    Tudo isso graças ao trabalho de excelência da Escola de Música.
    Nunca faltou boa música aqui em casa.
    E tudo isso devemos ao trabalho incansável do casal Mahle.
    Privilégio poder tê-los na vida da nossa família.
    Difícil, acho mesmo que impossível, se conformar com o que estão fazendo com nossa escola, reconhecida internacionalmente por sua qualidade.
    Obrigada, Beatriz.
    Você escreve por muita gente.

  4. Quem precisa de música para se sentir inteiro, com certeza entende o que você está dizendo. A vida certamente é outra para quem a preenche também com a música, tornando-a essencial. Pessoas como vocês, diretamente influenciados pelo convívio com os Mahle e a Escola de Música, têm que fazer registros como os acima, formas possíveis para tentar sensibilizar aqueles que ainda não entenderam o que a cidade perde com o descaso para com a EMPEM.

  5. Realmente muito triste, especialmente para quem viveu uma boa parte da vida convivendo no ambiente alegre e cultural da nossa Escola de Música E. Mahle. E fica a pergunta: o que podemos fazer??? Como ter a Nossa Escola de volta?!?!?

    1. Quanto mais gente estiver se perguntando e multiplicando sua indignação com o que está acontecendo, mais possível parece ser encontrar uma solução. Como já disse em comentário anterior, me parece urgente que ex-aluno e professores cobrem de maneira formal aos representantes da Prefeitura e da Câmara por uma posição diante de tal fato, já que até o momento ninguém se manifestou. Afinal, a cidade conta com uma Secretaria de Cultura, não é?

  6. Realmente muito bom artigo, denunciando uma séria agressão contra um dos maiores bens do patrimônio cultural de Piracicaba. Apoio os encaminhamentos propostos também lamentando profundamente o ocorrido. .

  7. Parabéns xará, mais uma vez, por apontar com o dedo o descaso com a cultura. Morei em Piracicaba nos anos 90 e é com muita tristeza que recebo a notícia sobre a escola de música. Concordo plenamente com a sua visão de educação. Considero-me privilegiada neste país onde disciplinas como música, artes e educação física foram retiradas do currículo obrigatório das escolas públicas. Disciplinas importantíssimas para o desenvolvimento das outras consideradas prioritárias como matemática. O que é música se não matemática pura?
    gde abç

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