Sei que todo mundo conhece esta estória, mas… Recordando.
Era ainda a pré-história e um troglodita estava sentado à porta da caverna ruminando, quando viu uma pedra rolar do alto da montanha. Teve, então, o vislumbre de que coisas redondas rolam e poderiam até servir para transportar outras coisas, se, por exemplo, aperfeiçoadas, se transformassem em rodas.
A partir de então, rodas foram sendo utilizadas como para trazer troncos de árvores das montanhas, com muito menos esforço, substituindo a mão de obra de pelo menos dez outros trogloditas, que, agora desempregados, devem ter ficado se entreolhando e murmurando “hug!Uhm?,hum!?, mum?!” Daqui talvez tenha surgido também o primeiro sindicato. No caso, dos trabalhadores em transportes de carga.
A sociedade de ogros, todavia, logo percebeu que todos podiam agora ir pescar, caçar, desenvolver a escrita, a filosofia, enfim, fazer mais coisas – inclusive com a madeira extra trazida com as rodas. Aquilo sem dúvida possibilitou o “progresso” (seja lá o que for isso).
Dia desses vi um documentário da BBC de Londres (que, óbvio, passou na TV Educativa, não nas TVs “abertas”) que abordava o fato de que, já em meados do século XIX, estabelecida a indústria têxtil na Europa, uma máquina de tecer – um tear, portanto – foi aperfeiçoado (França e Inglaterra) utilizando-se seus idealizadores de “fitas perfuradas” que eram “lidas” por um cursor que, a seguir, comandava o tear, fazendo com que a padronagem do tecido, com cores, desenhos, letras etc., saísse automaticamente na linha de produção. Concluíram os autores do documentário: “o primeiro computador!” (ou robô).
Antigo, né? Bem antes daquele desenvolvido nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Ou, ao menos, era já um sistema automatizado de produção que deve sim ser encartado nas teorias da era da informatização (até porque os antigos computadores, mesmo nos anos 70 do século passado, ainda se utilizavam de cartões perfurados para armazenar e transmitir dados. Lembram-se da Loteria Esportiva?).
Ned Lud, dizem, teria sido um trabalhador inglês da área têxtil, no século XIX, que passava a maior parte do tempo ou desempregado ou, quando empregado, brigando com os patrões por melhores salários e condições de vida e trabalho. Teria liderado trabalhadores, e seu movimento ficou conhecido como “Ludismo”.
O movimento caracterizava-se por grupos de trabalhadores cujo objetivo era invadir as fábricas de tecidos para destruir os teares modernos, esses que, como se vê, eram responsabilizados pelo desemprego e/ou baixos salários.
Curioso, né? O inimigo não era o capitalismo. Eram as máquinas modernas, era a evolução tecnológica.
Marx e Engels não haviam ainda explicado as coisas, ou estavam começando a fazê-lo mais ou menos à mesma época.
Tive a honra de ser aluno de mestrado do grande jurista e político brasileiro, hoje falecido, André Franco Montoro. A matéria era a “Teoria Geral do Direito.” Uma das discussões centrais: a utilização de computadores para proferir decisões judiciais.
Indo direto ao assunto, ao menos nos idos da década de 80 do século passado, a conclusão foi a de que isso era realmente impossível, substituírem-se juízes (e promotores e advogados), seres humanos, por computadores. As máquinas só poderiam ser utilizadas por operadores do direito como “prótese” do cérebro e da memória – expressão e conceito magistral do professor Montoro. Assim como os óculos são prótese para a visão, o computador é uma prótese do cérebro, principalmente da memória. Assim como seus olhos continuarão indispensáveis para que você enxergue, assim também seu cérebro será indispensável para que haja o pensar inteligente.
Um grande exemplo daquela conclusão acabou sendo a epidemia de “AIDS” ou a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que espocava por sinal na mesma década de 80 do século passado. Nenhum computador do mundo retinha a informação (ou seus programadores) no sentido de que os atingidos pela doença deveriam gozar de uma especial proteção no emprego, notadamente contra a dispensa discriminatória.
No mundo inteiro, no entanto, desandaram os juízes a acolher os pedidos dos advogados em favor de seus constituintes doentes, lhes concedendo a reparação pelas injustas dispensas, muitas, por incrível que pareça, por justa causa. Ou seja, a vítima da doença era ainda vitimada mais uma vez, agora pela sociedade, ao ser demitido por falta grave. Afinal, onde já se viu ficar doente? E ainda com “aquela” doença?! Risível se não fosse trágico.
Graças a Deus, não eram computadores a julgar os homens, porque, se fossem, as dispensas eram todas lícitas pelo princípio de que aquilo que não está proibido é permitido. E isso tanto nos Estados Unidos como na Argentina, no Brasil, na França, etc. Ou seja, em todos esses países, os tribunais mesmo à falta de lei, (e, portanto, não havia como o programador do computador prever isso com a antecedência necessária), concederam especial proteção aos humanos fragilizados pelos revezes da vida. Enfim, fizeram Justiça. Aliás, principal tarefa de juízes. Não repetir leis como papagaios. Ou como computadores. Mas explicar isso para o computador (ou para o papagaio) ou esperar que ele descubra sozinho é outra coisa, né?
De início portanto, é um rematado exagero afirmar-se que médicos, advogados, psicólogos, filósofos, pesquisadores ou mesmo técnicos das mais variadas áreas serão substituídos por máquinas insensíveis e burras (aliás, será que existe mesmo inteligência artificial?). E até professores, que precisam além de conhecimento formal, muita criatividade e inspiração em aula para terem autênticos pupilos (imaginou se Sócrates fosse um computador? Que tragédia? Grega! Por exemplo, como cumpriria a pena de tomar cicuta, o que fez na presença de seus amigos e alunos dando-lhes o exemplo magnífico que todos conhecemos?).
Verdade que aqui a discussão também é antiga, desde o filme “2001: uma Odisséia no Espaço,” e mais recentemente o filme “Eu, Robô”.
Mas ainda é necessário observar-se que o capitalismo tem interesse em alarmar os pobres, dizendo que não terão empregos e salários se não se comportarem direito, submetendo-se a trabalhar de graça ou a quase isso (aliás, discurso ora recorrente de Messias, o Bolsonaro, que inclusive tem se empenhado na eliminação de direitos trabalhistas).
Avoluma-se na mídia, notadamente nos canais de comunicação social, “fakes” ou o que quer que seja, que vaticinam um futuro sombrio, sem empregos, mais ou menos igual àquele que preocupou os homens de Mu (ou Moo), quando a roda foi inventada. Ou ainda tem atormentado homens como Ned Lud, que se vivo fosse hoje, ainda estaria invadindo fábricas para destruir robôs e computadores.
A vacina de que Ned Lud e outros trogloditas, como Brucutu, precisariam tomar chama-se “Das Kapital” – parece que desenvolvida em algum laboratório alemão, ou na Inglaterra, algo assim.
Na verdade, a vacina aludida pode até não servir mais para muita coisa nos dias que correm, mas pelo menos servirá para desbaratinar os incautos quanto ao fato de que o capitalismo e a tecnologia podem até deslocar a mão de obra de um para outro lugar. Os homens continuarão sendo necessários, não só para executar tarefas, (inclusive projetando, construindo, operando e fazendo a manutenção dos computadores), mas ainda outras das mais variadas e novidadeiras, assim como as mais penosas, insalubres e perigosas. Ainda serão necessários para consumir os produtos da indústria capitalista, que, não tem jeito, vai ter que continuar contando com pessoas consumindo coisas. Parece que não conseguirão se livrar nem de consumidores, nem de trabalhadores. A não ser que, de fato, consigam bolar uma plutocracia absoluta, tornando os pobres absolutamente desnecessários ou eliminando-os. Será? Bom, os visionários dirão que sim. Será quando todos os homens forem ricos porque as máquinas farão tudo mesmo, e não haverá mais a miséria e ignorância, com o fim definitivo das classes sociais (Aldous Huxley ou Karl Marx vaticinaram isso? Meu Deus, que confusão!). Enfim, o Paraíso (aliás, está até na Bíblia).
Pena, não vou ver nada disso. Enquanto isso, vou trabalhando e procurando emprego. Alguém tem um aí? Advogados trabalhistas no Brasil estão atualmente desempregados, ou quase isso. Mas, vejam lá, não por causa dos computadores!
Alexandre A. Gualazzi é professor de Direito do Trabalho na UNIMEP