Nesta novela ao mesmo tempo hilária e terna cruzam-se uma revolução (a soviética) e um golpe (o de 1964, no Brasil), o idealismo inocente de sujeitos que sonham com um mundo menos injusto (imaginando-se revolucionários) e o peso da luta pela sobrevivência quotidiana sobre quem não é rico (sentindo-se explorado e oprimido), o amor “à causa” e o amor à família – tantas vezes colocado um contra o outro. E no meio disso tudo, a presença de Kafka!
Em Os leopardos de Kafka, o que se conta é a história de Benjamin Kantarovitch, o Ratinho, judeuzinho que saiu com a família da Bessarábia para o Brasil, fugindo de medo dos acontecimentos que precederam e sucederam a revolução russa de 1917.
Ou melhor, o que se conta é uma história que Ratinho viveu e não costumava contar – a não ser quando necessário. Nela, muito jovem, ele recebeu, em Praga (para onde, vencendo o medo, viajara pela primeira vez na vida), do famoso escritor tcheco, um texto de poucas e obscuras linhas, que tomou por mensagem cifrada no decorrer de uma missão que tomara a si a pedido de um primo (Iossi), às vésperas de sua morte. Missão que imaginavam, Iossi e ele, atribuída por ninguém menos que Trotsky.
A história gira em torno desse fato para, linha após linha, colocar o leitor diante de situações tragicômicas envolvendo personagens desprovidos de complicações que não sejam as de, sem grandes arroubos, evitar o engolimento pelo torvelinho do nada, para isso agarrando-se a idealismos e pequenos afetos quotidianos. O que é feito magistralmente, num formato literário próximo à da trama policial ou detetivesca.
Iossi (antes da morte prematura, ainda em Chernovitzky, pouco depois de ter se encontrado com Trotsky), Benjamin, e também Leopoldo Ribeiro, seu sócio numa alfaiataria em Porto Alegre, são figuras que labutam diariamente para sobreviver, dedicando-se a ofício com o qual é impossível “acumular capital”, mas que não se furtam a leituras e a debates acalorados sobre a possibilidade de uma revolução do proletariado, discutindo o Manifesto Comunista com vigor e raciocínio tão afiado e combativo como os de judeu estudando a sua Torá. Quixotescos, eles sofrem no mundo real, insignificantes que são; mas, mentalmente se imaginam poderosos e valorosos, desfrutando as delícias intelectuais e conquistas espirituais que encontram na sua militância de eficácia duvidosa (não para eles). Assim, mais apanhando que batendo, vão levando a vida, não dedicando muita atenção às pancadas, de olho em imaginárias rotas de fuga.
A história de Ratinho pode parecer, à primeira vista, uma zombaria, uma crítica maldosa ao idealismo de marxistas e comunistas, mas o que ela revela muito claramente é uma ternura especial pelos indivíduos capazes de se agarrar a utopias(como Iossi, Ratinho e Leopoldo), corajosos a ponto de arriscar a própria vida (ou várias vezes cogitar de fazê-lo) no cumprimento de missões nobres (visando interesses que não são os próprios e imediatos), paralelamente à rotina extenuante em busca do pão de cada dia.
Ratinho é um anti-herói, mas que figura inspiradora! Ninguém desejará “ficar na pele” dele, mas é difícil imaginar alguém que não torça por ele no transcorrer de sua aventura, ou que não se compadeça dele no final dela.
O texto de Franz Kafka que perpassa toda a história e inspira o título da novela, escrito em alemão, dizia que os leopardos irrompiam no templo e bebiam até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; que isso se repetira tantas vezes que no fim todos já sabiam o que ia acontecer, e que afinal a cena tinha passado a fazer parte do ritual. Era uma mensagem cifrada para viabilizar uma ação revolucionária, como imaginou Ratinho, ou era outra coisa? Qual foi o “milagre” que levou Kafka a enviar o bilhete envelopado para o judeuzinho numa espelunca de Praga? Que fim levou o papelzinho assinado pelo famoso escritor, que Ratinho carregou consigo até o final da vida? É ler o livro e decifrar este pequeno enigma e, ao mesmo tempo, “perder um tempo” risonhamente pensando no enigma genérico que a todos envolve: a vida.
P.S.: Assim como Benjamin Kantarovitch, carrego comigo palavras manuscritas (nada enigmáticas) assinadas por um grande escritor: “Para Valdemir, homenagem a seu talento de economista e escritor. É ele Moacyr Scliar. Autógrafo obtido em bate-papo literário no Sesc de Araraquara em 06/05/2010.
(Referência: SCLIAR, Moacyr. Os leopardos de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 117 p.).
Valdemir Pires é economista e escritor.