“O oficial do exército era da Igreja Batista e por meu sogro ser metodista mereceu sondagem mais cuidadosa…“-  depoimento do pastor Nilson da Silva Junior.

“O oficial do exército era da Igreja Batista e por meu sogro ser metodista mereceu sondagem mais cuidadosa…“- depoimento do pastor Nilson da Silva Junior.

Foi em 1984, já no ensino médio, que comecei a me dar conta do que significou a ditadura militar no Brasil ao participar de um comício pelas Diretas Já! Era assim que se chamava a mobilização nacional que pedia o fim dos governos militares através da convocação de eleições diretas – a Emenda Dante de Oliveira –, o que aconteceu no ano seguinte. Afinal, há muitos anos várias personalidades estavam voltando do exílio. Lembro de ter visto pela TV, cinco anos antes, a chegada de Leonel Brizola e Betinho. Eram marcos da nossa história que eu pude ver e nem me dava conta.

Foi, no entanto, dali uns anos que o assunto me tocou com mais proximidade – ouvindo o relato daquele que viria a ser meu sogro, quando foi denunciado e investigado como subversivo pelos militares. Ele era professor de história e geografia, esclarecido, crítico e tinha posições claras sobre a truculência e o desrespeito daquele tempo. Por sorte, o oficial do exército escolhido para investigá-lo era da Igreja Batista e por meu sogro ser metodista mereceu sondagem mais cuidadosa.

Meu sogro contou que num domingo pela manhã viu um “visitante” na Igreja. Meu sogro era professor da classe da Escola Dominical e o homem atenciosamente lhe ouviu. No final, já fora do templo, o militar o chamou à parte e explicou que era da Igreja Batista e oficial do exército e viera investigá-lo por conta de uma denúncia, mas percebeu que nenhum perigo ele oferecia ao regime. No final da história meu sogro observou: “O que seria de mim e de minha família se aquele oficial não tivesse um pouco de bom senso!”

Histórias como essas me cercaram vida afora, especialmente quando me tornei pastor da Pastoral Universitária da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e tive o professor Elias Boaventura como meu orientador na pós-graduação. Boaventura me contou que, certa vez, deu uma palestra em Belo Horizonte e teceu críticas ao regime. Lúcido até o fim, ele não poderia se omitir num momento histórico daqueles. Disse que depois de encerrada a palestra o avisaram que corria perigo de ser preso e por isso teve que fazer imediatamente uma viagem ininterrupta de Belo Horizonte a Piracicaba para se livrar de qualquer “incidente”.

Quanta gente querida foi ameaçada, calada, intimidada como eu e muitos outros que provavelmente também teríamos sido se estivéssemos adultos na época. Quantas histórias de perseguições sem sentido, como no caso de um colega pastor que ainda seminarista em Rudge Ramos teve que enterrar seus livros no gramado da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista porque souberam que os militares dariam uma “batida” e quem tivesse livros considerados perigosos poderia ser preso. Quanto medo e tristeza rondou nosso país numa infeliz tentativa de tirar do povo a luz, o esclarecimento e, pior, a liberdade!

O que me marcou também foram os olhares dessas pessoas ilustres que conheci, homens e mulheres que viveram uma escuridão atroz e mesmo assim se mantiveram iluminados pela luz da liberdade de Cristo. Afinal, como bem disse o apóstolo: “foi para a liberdade que Ele nos libertou”. E a liberdade e a luz se mantiveram mesmo naqueles que foram encarcerados e torturados, mesmo naqueles que perderam suas vidas e hoje ainda vivem para nos inspirar e nos mostrar que a luta é e sempre será contra qualquer tipo de opressão e aprisionamento – seja ele físico, espiritual, material ou intelectual.

Nota dos editores: Elias Boaventura, enquanto reitor da UNIMEP, entre  1978 e 1986, foi uma das figuras mais vigiadas e acompanhadas pelos órgãos de repressão na região, em função das posturas revolucionárias e de forte intransigência democrática com que dirigiu a instituição. Documentos recuperados nos arquivos do DEOPS-SP mostram vigilância constante diante da cessão da Universidade para os congressos da UNE, encontro de jovens palestinos, e a tentativa de afastar Boaventura da direção da Universidade pelos próprios metodistas. Ele nunca chegou a ser preso.

 


Nilson da Silva Júnior, 57 anos, é doutor em educação, mestre em ciências da religião, pastor metodista e professor.

 

Foto: professor Elias Boaventura, reitor da UNIMEP, conversa com professores e funcionários nos anos 1980. Acervo Martha Whatts CCMW/IEP.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *