“Filmado sentado na grama, fazendo reunião com estudantes e representante da UNE, fui punido com o Decreto 477…” – Depoimento de Dorgival Henrique

“Filmado sentado na grama, fazendo reunião com estudantes e representante da UNE, fui punido com o Decreto 477…” – Depoimento de Dorgival Henrique

Minha militância política começa quando fui convidado e entrei na Juventude Estudantil Católica – JEC – com aproximadamente 16 anos de idade. A Ação Católica era formada por diferentes organizações que focavam na juventude: JAC (Juventude Agrária), JEC (Juventude Estudantil – foco nos estudantes secundaristas), JIC (Juventude Independente), JOC (Juventude Operária), JUC (Juventude Universitária). Praticava-se no âmbito da Ação Católica, na época, uma religiosidade política. Após o término da Ação Católica, com o golpe de 64 e a perseguição a suas lideranças, alguns procuraram se engajar e conquistar colegas para a Ação Popular (AP), organização de esquerda não mais católica, mas liderada por cristãos de diversas religiões protestantes, e incluindo ateus. A AP no seu início foi marcada por militantes da JUC e da JEC.

Após dois anos de conclusão do ensino médio, ingressei na primeira turma da FADIR, Faculdade de Direito de São José do Rio Preto, em 1966.Eu tinha contato sistemático com os universitários simpáticos da AP, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, localizada na cidade. No final do segundo ano de Faculdade, eu e outros colegas fomos comunicados pelo Diretor: “pegue sua transferência e saída desta Faculdade, pois aqui você não poderá mais estudar”. Solicitamos transferência para a Universidade de Brasília (UnB) e fomos bem-sucedidos. Como éramos estudantes pobres tínhamos que trabalhar para nos manter. Após morarmos três meses em quarto alugado, participamos da invasão de um prédio que estava interditado, pois corria o risco de desabar. Essa invasão chamou atenção de deputados da oposição que pressionaram o governo para arrumar alojamento aos estudantes.

Com as agitações políticas de 1968, havia poucas alternativas para os estudantes conscientes que não fosse a de ingressar em organizações que preconizavam derrubar a ditadura. Fui integrado para militar no movimento estudantil, o que já fazia há muito.

Em agosto, aconteceu a invasão da UnB. No dia 29 de agosto de 1968, a Universidade de Brasília foi alvo de uma invasão militar que resultou no espancamento, prisão e tortura de estudantes e funcionários. Sob o pretexto de cumprir mandados de prisão contra estudantes, as forças policiais e militares cercaram a Universidade com viaturas e caminhões de choque. Centenas de soldados invadiram prédios e salas de aulas, com metralhadoras, fuzis e bombas de gás lacrimogênio. Cerca de 300 estudantes foram mantidos presos na quadra de basquete da Universidade, que se transformou, segundo o relato dos próprios estudantes, em um campo de concentração. Eu e outros estudantes conseguimos fugir em direção ao restaurante universitário, e ouvíamos os estampidos de balas no chão.

Os militantes e simpatizantes da AP que militavam no movimento estudantil eram orientados, na região de Brasília, a reingressarem na Universidade para fazer outros cursos superiores, pois o movimento estudantil era um celeiro de quadros. Eu ingressei no curso de História. 

Fui filmado, sentado na grama, fazendo reunião com outros estudantes e com representante da UNE e fui punido com o Decreto 477 que suspendia estudantes e professores por três anos, mas eu já possuía certificado de conclusão de curso superior e histórico escolar.

Em outubro de 1971, um agente foi no meu alojamento. Meus companheiros do quarto disseram que eu não estava e não sabiam onde eu me encontrava. Fui avisado que o homem que se apresentou como meu tio era o mesmo agente que já tinha invadido o alojamento e que eles reconheceram.

Eu não tinha noção do que estava acontecendo, pois os demais companheiros não tinham sido procurados pela repressão política. Posteriormente, soube que um ex-estudante da UnB tinha sido preso e, após tortura, abriu meu nome como militante da AP na UnB. As orientações da direção regional foram para que ficasse afastado por um tempo. Fui a São Paulo, mas voltei dez dias depois; já estava casado, tinha uma filha de 6 meses de idade, minha esposa cursava o último semestre de Letras.

Fui, então, levado para ficar em uma casa em que não morava ninguém, na cidade satélite de Sobradinho. Todos os dias me levavam comida e eu dormia num colchão no chão. Acabei deixando um bilhete longo dizendo que iria para São Paulo e de lá entraria em contato com a organização na condição de simpatizante. A nossa filha Juliana, no início de 1972, foi morar com os meus pais em São José do Rio Preto.

Eu comecei a ser procurado pela polícia política do Distrito Federal por conta da ligação que tive com os estudantes de geologia da UnB. Em São Paulo, consegui trabalhar como secretário no Mobral de Perus-Pirituba, até próximo à data do meu julgamento, 17 de julho de 1972. Eu e alguns militantes que não foram presos, mas estavam no inquérito militar, contratamos advogados para nos defenderem.

Compareci ao julgamento, com meu advogado, na parte da manhã, para sentir o peso das acusações. As acusações que me foram dirigidas eram pesadas, e, com meu advogado, na hora do almoço, concordei que era melhor eu não voltar mais no tribunal e fugir. Assim, viajei para Goiânia. Fui condenado a dois anos, pena máxima para o artigo em que fui enquadrado, e considerado réu revel.

Morei em São Paulo em apartamentos ou casas de amigos que se arriscavam abrigando-me, até que meu irmão conseguiu alugar um imóvel nos fundos de uma casa em Perdizes. Nessa residência, pudemos trazer a Juliana para morar conosco, após 8 meses com os avós paternos, em São José do Rio Preto. Minha esposa trabalhava no Colégio Equipe e eu, utilizando-me da carteira de identidade de São Paulo e não a de Brasília, consegui ser aprovado para o pós-graduação em Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV), recebendo bolsa de estudos que garantia minha sobrevivência. Em plena vivência clandestina ainda tive mais duas filhas.

A prescrição da pena que me foi aplicada terminaria em julho de 1976, mas ela só veio em dezembro de 1978, expedida pela Justiça Militar de Brasília. O que era para ser quatro durou seis anos.

Em fevereiro de 1979 eu e minha família nos mudamos para Piracicaba, onde fui trabalhar na Unimep, encontrando neste local de trabalho um local aberto e livre para o diálogo e a construção democrática.

 


Dorgival Henrique, 79 anos, é presidente do IPEDD – Instituto Piracicabano de Estudos e Defesa da Democracia. Foi professor da UNIMEP até 2018, onde também exerceu o cargo de Diretor da Faculdade de Gestão e Negócios.

 

(Foto: Invasão dos militares na UNB – acervo do Memorial da Democracia).

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