“Incrível um grupo de ousados caipiras conseguir sensibilizar grandes intelectuais que resistiam à truculência da ditadura…”  – depoimento de Fausto Longo

“Incrível um grupo de ousados caipiras conseguir sensibilizar grandes intelectuais que resistiam à truculência da ditadura…” – depoimento de Fausto Longo

Os primeiros contatos com a política ou – talvez seja mais apropriado dizer – com as eleições foi no período em que meu pai, mesário, nos deixava acompanhá-lo ou, pelo menos, acompanharmos minha mãe quando ela levava um lanche para ele enquanto ele exercia sua função numa das “mesas” – então na Rua do Rosário, em frente à Beneficência Portuguesa. Lembro-me das campanhas para prefeito e até do Salgot, com seu Citröen preto, sendo empurrado pelos correligionários mais fanáticos – na mesma Rua Regente Feijó, ainda de paralelepípedos e duas mãos de direção.

O burburinho provocado pelo golpe militar impetrado contra o estado de direito brasileiro, em primeiro de abril, Dia da Mentira, em 1964, foi impressionante, independente se a favor ou contra. Mas esse atentado à democracia ainda não provocara em mim, então com 11 anos, quaisquer reações mais conscientes do que estava ocorrendo e nem como esse fato interferiria em minha própria história, embora sentisse um forte sentimento de tristeza e, principalmente, de dúvida – impregnando todos os ambientes que então frequentava, seja em casa, com os pequenos colegas da vizinhança e, sobretudo, na escola, onde professores mais ou menos politicamente engajados emitiam suas opiniões e preocupações, variando de entusiasmo de alguns pelo afastamento da possibilidade dos “comunistas” tomarem nossas casas ou profunda sensação de angústia, insegurança e indignação pela quebra da normalidade institucional.

Nos três anos seguintes, utilizava o desenho, ainda de modo muito rudimentar, para expressar o que via ou o que sentia. Acompanhava a agitação dos movimentos estudantis, secundaristas, UNE, os jornais da imprensa alternativa – os chamados “nanicos”, como o “Opinião” – jornais sindicais, “O Pasquim,” participava das movimentações em torno das campanhas eleitorais – evidentemente sempre havia empatia com as candidaturas que defendiam o fim da ditadura e a volta das “fardas” para os quartéis. Mas meu envolvimento efetivo se deu quando fui convidado pelo Prof. Frederico Alberto Blaauw para filiar-me ao então Movimento Democrático Brasileiro – aí, tudo mudou. Só então, aos dezoito anos, passei a compreender a origem do sentimento de indignação e angústia que sentia.

A verdade é que a ditadura, a violência, a ausência de liberdade plena, a censura, a mão invisível da opressão, produziam desencanto e uma terrível sensação de asfixia – pior, dúvida sobre o futuro. Mesmo com menos idade e experiência e até em função do grande interesse que demonstrava, da habilidade de me exprimir através do desenho e a influência do ambiente efervescente, pude conviver com essa realidade. A eleição de um jovem prefeito pelo partido de oposição ao governo – Adilson Benedito Maluf – em 1973, bem como a formação de sua equipe, composta por grande parte de nomes não tradicionais, trouxe um clima de novos ares e entusiasmo na pacata e viciada vida política da cidade de Piracicaba. Lembro-me que, aprendiz de fotógrafo de “O Diário”, fui escalado pelo Henrique Spavieri para realizar a primeira foto do jovem prefeito em seu primeiro dia no gabinete, primeira foto publicada!

Nesse período, passei a conviver bastante com um grupo que atuava em diversas frentes que agitavam a política local, seja no jornalismo, nos partidos, nas atividades culturais, envolvendo, inevitavelmente o poder público local, a Prefeitura e a Câmara Municipal. Uma das pessoas que eu costumava identificar como o Oswald de Andrade caipira era o Alceu Marozzi Righeto. Alceu nos instigava à participação mais ativa e nos tirava da zona de conforto, propondo discussões e maior envolvimento no processo de transformação que a cidade experimentava, e queria – até com certa ansiedade – aproveitar a oportunidade para avançar e romper a cultura vigente, estática, engessada e refratária à renovação. Independente da origem da ideia de uma mostra de desenhos de humor, foi o Alceu quem insistentemente agitou o meio político/intelectual que proporcionou a efetiva concretização do primeiro Salão de Humor. Enquanto conviviam intenções de usar o humor gráfico como arte provocativa ao sisudo ambiente das artes dominado pelo tradicionalismo dos Dutra, ou para escrachar ao modo “O Pasquim” a rotina provinciana da política e da cultura local, Alceu teve a percepção de que a possibilidade de se estabelecer um espaço alternativo, fora das garras da censura focada no eixo da grande imprensa, ou seja Rio/São Paulo, era uma oportunidade para “alfinetar” o regime e, ao mesmo tempo, colocar a cidade além de seus “muros”, não só no sentido geográfico, claro.

A convivência neste novo ambiente, provocado pelas idas e vindas a São Paulo em busca de alternativas para viabilizar os primeiros salões, nos colocava frente a frente com personagens que participavam ou eram as reais vítimas da censura e das garras da ditadura. Nesse contexto, todos nós que tivemos esse privilégio também tínhamos a responsabilidade de compreender a dimensão da atuação opressiva que os militares exerciam contra os que lutavam pelo retorno à normalidade democrática, quase sempre mancomunados com extremistas e adesistas que se locupletavam com as migalhas oferecidas, exercendo poderes e mandatos não legitimados pelo processo democrático. Para os que viveram essa experiência, um espaço como o Salão de Humor passou a ter um significado muito mais comprometido e engajado, embora, ainda, alguns que participavam e colaboravam para sua realização continuavam a vê-lo meramente como mais um evento cultural, engraçado até. Incrível que um grupo de ousados caipiras conseguiu sensibilizar grandes intelectuais que resistiam à truculência da ditadura. Porém, ainda encontrava obstáculos na própria cidade – não de caráter ideológico – por simples inconformidade com uma inevitável renovação de pensamento que não podiam suportar. Barreiras vencidas, as burocráticas e as financeiras, o Primeiro Salão enfim foi instalado, exatamente na mesma praça onde foi gestado. Era agosto de 1974 e eu estava lá.

 

Nota dos editores: O Salão Internacional de Humor nunca deixou de ser realizado, em Piracicaba, anualmente, desde sua criação. Seu espaço privilegiado para a crítica e o registro destes mais de 50 anos contou com a presença e colaboração dos principais artistas gráficos do país, como Jaguar, Zélio, Laerte, os irmãos Caruso, Angeli, Elifas Andreato, Jaime Leão, entre tantos outros. 


Fausto Guilherme Longo, 71 anos, arquiteto, urbanista, cartunista. Político ítalo-caipira. Foi vereador, deputado e senador no parlamento da República Italiana.

 

(Foto: obra de Fausto Longo para o Salão de Humor de Piracicaba).

2 thoughts on ““Incrível um grupo de ousados caipiras conseguir sensibilizar grandes intelectuais que resistiam à truculência da ditadura…” – depoimento de Fausto Longo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *