O Neoliberalismo e a reforma do Aparelho do Estado brasileiro

O Neoliberalismo e a reforma do Aparelho do Estado brasileiro

Pensar o neoliberalismo enquanto perspectiva capitalista exige uma análise dupla. Por um lado, a verificação dos condicionantes históricos que produziram estas doutrinas e, por outro, as ideias em si. O objetivo deste texto, portanto, consistiu em trazer para o debate as principais teorias propulsoras do neoliberalismo e o quanto o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado brasileiro assinado por Fernando Henrique Cardoso em 1995 foi influenciado por essas ideologias. Foram analisados três artigos contidos no livro “Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático”,obra publicada em 1995 pela Editora Paz e Terra e assinada por Emir Sader e Pablo Gentili. Os artigos constituem obras acadêmicas geradas em um contexto específico voltado para as eleições presidenciais no Brasil de 1994. Os textos analisados foram: Perry Anderson, “Balanço do Neoliberalismo”; José Paulo Netto, “Repensando o balanço do neoliberalismo” e Francisco de Oliveira,“Neoliberalismo à brasileira”.  

A ortodoxia liberal pouco mudou desde o pensador Friedrich Hayec e seu livro “O Caminho da Servidão” (1944). Friedrick Hayec possuía um alvo bem específico, o Partido Trabalhista Inglês, grande vencedor das eleições de 1945 na Inglaterra. Porém, além das disputas políticas ocorridas na superfície, esta ortodoxia liberal minava o Estado de bem-estar social predominante nos países europeus e, no campo das ideias econômicas, o keynesianismo. Para Hayec, a social democracia seria o caminho para a servidão moderna. (ANDERSON, 1995)

Em 1947 na Suiça, foram convocados por Friedrick Hayec aqueles que compartilhavam de sua ideologia, como Milton Friedman, Karl Popper, Ludwig Von Mises, entre outros. Reunidos numa espécie de seita ou irmandade, estes pensadores prepararam as regras para um outro tipo de capitalismo que se tornaria dominante e hegemônico no futuro. Hayec e seus companheiros defendiam a desigualdade enquanto motor da concorrência.Como resultado imediato desta equação, ocorreria um surto de prosperidade para todos. Segundo esta lógica, o Estado de bem-estar nada mais fazia do que impedir a concorrência ao destruir as liberdades individuais. (ANDERSON, 1995)

Estas ideias pouco foram levadas a sério até a crise de 1973, conjuntura em que os Estados voltados para a social democracia na Europa já apresentavam sinais de fadiga.O neoliberalismo ganhou terreno num contexto de recessão e inflação. O motivo destas crises, pela perspectiva liberal, foram os sindicatos, o movimento operário e as políticas sociais de distribuição de renda. Estes preceitos pressionariam as potencialidades do sistema capitalista sufocando todo o processo produtivo. O antídoto? Manter um Estado forte no embate aos sindicatos e nos controles orçamentário e inflacionário, porém frouxo nas questões sociais e nas intervenções econômicas. (ANDERSON, 1995)

Em termos políticos, estas ideologias foram materializadas pelos governos Thatcher (1979) na Inglaterra e Reagan (1980) nos EUA. Na Inglaterra, foi a primeira vez que um país de capitalismo avançado colocou em prática as teorias neoliberais e, em termos simbólicos, o caso inglês foi o mais significativo, pois o contexto europeu foi notadamente marcado pelas democracias de bem-estar. Nos anos do governo Thatcher, a emissão monetária foi contraída, os juros foram elevados, os impostos das altas rendas diminuídos, os controles sobre fluxos financeiros abolidos, gastos sociais foram cortados e uma legislação anti-sindical foi promulgada. Lançou-se um programa privatista enquanto os salários permaneceram afrouxados devido ao maciço desemprego que criou um contingente reserva. Este modelo se tornou a referência e foi ao encontro da ortodoxia neoliberal de priorização da estabilidade monetária, contenção do orçamento, concessões fiscais aos detentores do capital e abandono do pleno emprego.(ANDERSON, 1995)

O neoliberalismo foi testado na América Latina antes de sua efetivação no mundo desenvolvido. O Chile de 1973 sob o governo de Pinochet desregulou a economia, reprimiu os sindicatos e privatizou os bens públicos. O grande mentor destas políticas foi o pensador estadunidense Milton Friedman. No exemplo chileno a liberdade econômica ganhou força a partir das bases neoliberais sem, no entanto, colocar a ideia de democracia na pauta do debate. O anticomunismo característico da Guerra Fria vestia o neoliberalismo como defensor sem precedentes da liberdade e felicidade individuais, mesmo que sob uma ditadura militar. (ANDERSON, 1995)

A luta dos movimentos sindicais e sociais, nestas bases,elegeram o Estado e as grandes corporações como alvo a partir do desmonte das sociais democracias nos países desenvolvidos. A economia de mercado triunfou perante o nacional desenvolvimentismo, fato que implicou de forma direta nas práticas políticas de governos que levantaram a bandeira da austeridade e da administração gerencial dos Estados.

No Brasil, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de 1995, de forma implícita e com uma roupagem democrática, corroborou estas questões. Desdea década de 1980 que reformas neoliberais vinham sendo colocadas em prática, atingindo o ápice, no campo do discurso, no governoCollor. O Estado brasileiro ganhou a marca de desperdiçador e se tornou o bode expiatório da péssima distribuição de renda e das precarizações da saúde, educação e demais políticas sociais. Portanto, os bens públicos estigmatizaram-se largamente como de péssima qualidade, espaços de grande ineficiência e corrupção. (OLIVEIRA, 1995).

Mas foi no plano real do governo Itamar Franco em 1994, capitaneado pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que os pontos do neoliberalismo se materializaram. Este modelo econômico seguiu de forma ortodoxa os itens já exaltados neste texto. As medidas econômicas foram acompanhadas pelo conservadorismo social típico de quem tem medo de mudança. Desta forma,o caráter conservador do discurso neoliberal em que a questão do Estado resume-se a uma função reguladora dos jogos ocorridos no mercado enfraqueceu as mobilizações trabalhistas e sociais.

Os efeitos colaterais da política econômica de Fernando Henrique Cardoso seguiram os trâmites característicos dos países que adotaram o neoliberalismo, ou seja, a capacidade de luta e a organização do sindicalismo brasileiro foram minados. Portanto, a maior letalidade desta doutrina voltada para o individualismo decorreu do aniquilamento das organizações sindicais, populares e dos movimentos sociais. (OLIVEIRA, 1995) Esta “dessindicalização” criou um tipo novo de trabalhador, este mais condicionado à perda de força do movimento sindical tradicional. (NETTO, 1995).

Pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de 1995, se torna implícito o recrudescimento dos pontos característicos do neoliberalismo adaptados para a administração pública. Apesar do discurso de exaltação da democracia, evidenciou-se nos pontos da reforma a necessidade de transformar a gestão pública num emaranhado gerencial subordinado às leis do mercado com seus lucros a curto prazo. Portanto, o objetivo da reforma tramitou em transformar a administração pública, de modelo burocrático, a modelo gerencial. O cidadão, de parte constituinte do Estado, foi transformado em cliente do Estado, um simples contribuinte.[1]

Nos anos 1990, o aparente triunfo da democracia no mundo ocidental com o fim da URSS e, como acreditavam historiadores liberais, o fim da própria História devido à supremacia total do neoliberalismo, não mascarou as desigualdades robustecidas pelos modelos liberais de enaltecimento de uma doutrina capitalista em que o mercado financeiro cristaliza o grande paradigma ideológico. Uma análise desmistificada do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de Fernando Henrique Cardoso comprova que a mudança da administração pública defendida naquele contexto respondia mais aos anseios do mercado do que ao bem da maioria da população. A democracia tão explicitamente colocada nas páginas do Plano Diretor escancarou uma propaganda política de governo, pois num modelo de Estado neoliberal, a aparente democracia não é acompanhada pela melhoria das condições de vida da massa da população.

Estes desalento e desesperança apenas reforçaram a ideia neoliberal de que o bem público não serve ao sistema de mercado, além de massacrar a população com altos impostos em prol de serviços ineficientes. Neste sentido, o Plano Diretor reforçou ser “inadiável equacionar a questão da reforma ou da reconstrução do Estado, que já não consegue atender com eficiência a sobrecarga de demandas e ele dirigidas, sobretudo na área social”.[2]

O objetivo desta reforma estava em sepultar qualquer modelo de desenvolvimento voltado para o Estado, em outras palavras, cortar os resquícios keynesianos responsáveis pelo amplo crescimento econômico do século XX que tiveram o Estado como o principal motor. O Estado de bem-estar social dos países desenvolvidos deveria ser substituído pelo individualismo gerador dos lucros do capital financeiro com o seu mercado desregulamentado, ou para ser mais claro, o Estado “deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento”.[3]

Ressalta-se neste ano de 2019 a atualidade destas ideias. Vinte e cinco anos após a promulgação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, os preceitos neoliberais enquanto doutrina e ideologia continuam hegemônicos e amplamente difundidos, defendidos e aplicados pelos governos acoplados em Estados burgueses. Ao se reproduzir para a sociedade a lógica das leis de mercado, inevitavelmente se reproduz desigualdades raciais e culturais. Portanto, o preconceito gerado a partir das contradições econômicas de classe se alastra para o plano das convivências sociais e, entre as massas, repercute-se a ideia de desalento e desolação em relação à política e aos bens públicos. Desta forma, o terreno para a implementação do Estado mínimo por governos populistas e neofacistas torna-se fértil e ganha apoio popular.

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Rodrigo Barbosa Schiavinato é pós-graduando em Educação em Direitos Humanos pelo Instituto Federal de São Paulo.

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Sugestões de referências bibliográficas utilizadas no texto e que podem ampliar a discussão do tema.

Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995.

ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In. SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

NETTO, José Paulo. Repensando o balanço do neoliberalismo. In. SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

OLIVEIRA, Francisco de. Neoliberalismo à brasileira. In. SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.


[1]Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995.

[2] Idem. p. 10.

[3] Idem. p. 12.

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