O Natal em Paraisópolis.

O Natal em Paraisópolis.

Era dezembro. Era domingo. Dia primeiro do mês santo. No céu, as nuvens carregadas anunciavam o Advento, e carregavam também a magia chuvosa das tardes e noites da estação natalina. Sobre a terra, no Paraíso santo de Jesus Salvador, havia música e dança animando o espírito também santo de jovens meninos e meninas que, na cidade Paraíso, vivem à risca e sem escolhas os preceitos cristãos da vida pobre e humilde em comunidade. Santa comunidade. Santa humildade. Era dezembro. Era domingo. Primeiro domingo do Advento. E Deus pairava bondoso no céu – espelho dos pisca-piscas xing-lings coloridos pendendo de algumas janelas – a fazer de Paraisópolis uma favela-cidade mais que cristã (com seus mais de 50 mil habitantes vivendo espremidos em 900 mil metros quadrados).

Era dezembro. Era domingo. Primeiro domingo do Advento. E Deus pairava bondoso no céu – espelho dos pisca-piscas xing-lings coloridos pendendo de algumas janelas – a fazer de Paraisópolis uma favela-cidade mais que cristã (com seus mais de 50 mil habitantes vivendo espremidos em 900 mil metros quadrados).

Aproveitando o mês que é o Dele, Jesus se misturou aos jovens de Paraisópolis. E caminhava com eles, animado, cruzando vielas e becos, bocas e ruas, ladeiras e estreitos entre casinhas e barracos feitos do material que se consegue pagar, emprestar ou roubar – afinal, quem rouba para os pobres dá a Deus. E Deus era. Era quase noite, lusco-fusco mágico do Angelus, quando Jesus saiu de um baile funk vestido de menino – bermuda larga, boné sobre o rosto, corrente no pescoço e moletom. Na magia do Natal, Jesus – que é Deus e, por isso, habita homens e mulheres – foi visto também como menina. Sim. Uma menina Jesus linda, valente, corajosa, guerreira, conversando entre amigos a caminho de casa, voltando também do baile (não se espante, dizem mesmo que Jesus é trino – e pode se dividir facilmente em 3 pessoas – e que adora festas).

De repente, enquanto caminhava como menino e menina entre os jovens de Paraisópolis, Jesus viu seus passos ganharem velocidade junto ao grupo que, agora, por motivo ainda desconhecido, começava a correr para cá e para lá. Jesus pensou, é dezembro! É o Advento! E eu sou Jesus, caramba! Não há de haver confusão nenhum – o baile foi tranquilo, tudo está certo! Por que teriam os meus filhos de correr? Mas a correria entre as vielas sem saída continuava. Alguém devia estar aterrorizando aos seus jovens filhos – pensou Jesus. E gritos de desespero começaram a se fazer ouvir. Então, num momento de incredulidade e pouca fé nos homens, Jesus viu que seus jovens filho e filhas corriam de guardas antijovens, antifavela, antiJesus que – sem motivos – baixam porradas nas costas dos inocentes.

Correndo pelos becos, Jesus pensou que talvez estivesse enganado. Talvez não fosse Natal, talvez não fosse dezembro nem o Advento. Súbito, Jesus teve a clara certeza de que se tratava da Páscoa – de uma nova Páscoa sua. As coisas não mudam mesmo por aqui, pensou Jesus enquanto corria sem saber para onde. A vaga de gente ia e vinha, sem encontrar saída – e os gritos de desespero só aumentavam. Como sempre, Jesus pôs-se à frente do grupo. Ora. Era preciso fazer alguma coisa. Nenhum deles ali havia cometido qualquer delito – Jesus estava de prova! – e um celular, sorrateiro, documentara em vídeo que Jesus estava certo: ninguém ali havia feito nada de errado, todos caminhavam tranquilos até que a máquina de moer pretos e pobres a serviço do Estado os encurralou numa viela sem saída.

À frente do grupo, e sem temer sua nova Páscoa, Jesus-menino-e-menina tentou inibir um novo açoite de um dos guardas do Estado, prestes a fazer valer novamente a violência e a estupidez contra pobres e periféricos. Mas era dezembro. Era o Advento. Primeiro domingo do Advento. E o Natal acontecia primeiro, neste ano, ali, naquele beco sem saída que é a vida dos meninos e meninas pobres deste país controlado por tiranos, por Herodes sempre prontos a matar quem vive nas favelas e bairros pobres do Brasil.

Era quase noite e já era tarde para tentar fugir quando – olhos pingando sangue e nova coroa de espinhos à cabeça – Jesus viu que realmente era mesmo Natal. No céu, nove estrelas brilhavam novas e tristes – subidas dali do beco sem fim em sem saída daquela vida de violência à que aquelas estrelas tão novas só se viram em vida submetidas. Pisoteado pelo grupo que tentava escapar do massacre dos soldados romanos do Estado, Jesus – vendo as nove estrelas no céu – entendeu que, para alguns, morrer ali era como uma nova espécie de Natal: um Natal sanguinário e fatal como possibilidade de fuga, como única possibilidade de fuga, a se dar numa manjedoura suja de sangue humano, toda pisoteada. Era dezembro. Primeiro dia e primeiro domingo do mês. E Jesus subiu aos céus outra vez, junto dos seus, numa páscoa natalina antecipada. Nas vielas de Paraisópolis, pastores feito jovens sobreviventes anunciavam a velha novidade triste e cotidiana de um Advento feito de meninos-e-meninas Jesus assassinados – mas suas vozes não chegaram a ser ouvidas nas ruas ricas da cidades ou mesmo dentro das igrejas. E o Natal Pascal de Paraisópolis sucumbiu, como sempre acontece aos pobres, desprezado por entre as gentes.

Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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