Veio também pela estrada. Se bem que os campos daqui, felizmente, são outros. Nada de bandos pelas trilhas ou machimbombos incendiados. Nada de embuzeiros mutantes ou navios emborcados. Veio por léguas aparentemente seguras, por mãos de entregadores – que os perigos de nossa terra são outros, menos visíveis. Quando me dei por conta, estava o livro sobre a mesa de casa: coisa de tempos modernos, quase sonho. Se visto há um tempo na virtualidade, em outro já era presença física – assim de se pegar com a mão. Tempos de compras de matérias intangíveis: o antes impensado agora posto. E assim foi que o referido livro, tão esperado, se tornou concreto como que por encantamento no ver correr de alguns poucos dias de expectativa.
E o que tinha o livro de tão aguardado? De nada não parecia que era diferente dos exemplares já tidos. Só que ao contrário. Tinha – conforme anúncio na previsão dos classificados oferecidos – a assinatura de quem o havia escrito: autógrafo e registro que faziam da obra um exemplar mais diferentoso. Uma assinaturinha possível, talvez num canto, sobre uma data – e pronto. No mais, não se esperava o porém de outro tanto – que o corpo do texto haveria de ser igual aos seus semelhantes (que a graça da assinatura é que valia a façanha da minha aquisição). Coisa de quem gosta de colecionar especificidades de não se haver outras. Que, afinal, o dito livro nem fora tão caro para se tê-lo prestes a prefigurar na estante como o único exemplar a carregar o peso da marca de seu criador.
No de vez recebido, virara o pacote em embrulho desabitado – e alma fora posta em surpresa para fora. Sobre a página aberta, o escrito relustroso. Mas quem esperaria o de ser? Foi que, verificado o autógrafo, veio também a descoberta: o livro já tivera dono. Ou melhor, dona. Maria. Era ela quem possuíra o livro antes dos meus finalmentes comprados. No escrito em dedicatória na segunda folha, o nome dela. Maria. Apenas o nome primeiro, estampado em destaque e correição de sentimentos. Maria. E o livro já não mais poderia ser meu. Pagara por algo que não haveria de ter. O livro era de Maria – e a ela, por somente, pertenceria.
E foi de vez e feita que, vagando pela Terra Sonâmbula que lhe dá nome e título, o livro – de Mia (e de Maria) – me veio parar nas mãos com uma lembrança tão funda como a história nele por se ler. E assim seu autógrafo dizia:
À Maria
Celebrando no seu nome os nomes todos de todas mulheres.
Mia Couto – P.A.99
Em instantes, visto o nome e a mensagem, fez-se rebento em meus olhos o caso de Maria. Quem seria ela, de fato? O que teria feito ou desfeito para vir a deixar perdido ou solto, num sebo qualquer de Porto Alegre (o tal P. A. da dedicatória), um livro autografado pelo próprio Mia. E mais ainda seria. Será que Maria ainda vive ou vivia? Será que vendeu seu livro por precisar de dinheiro ou se desiludiu da vida e deitou suas estantes no balcão barato de algum livreiro? Seria ela Maria Aparecida ou – de tão sofrida – seria Maria da Conceição? Qual seria o enredo da vida de Maria que, no livro de Mia, fez-se paralela narrativa escrita à mão?
O livro sobre a mesa não me deu outra resposta ou solução. A história de Maria, nas contas do finalmente, seria enfim como a de todas de mesmo nome ou de nomes diferentes. Se no nome de Maria saudou o próprio Mia o nome de todas as Marias, deu-se então que a Maria de meu livro ganhou outra dimensão. Virou lenda, virou crônica, virou trama. E eu, seu guardião. Fez-se jeito que meu livro (de Maria) agora descansa – fechado a sete chaves vezes três – junto a outros autografados de minha coleção. E a exatidão que não havia, da Terra Sonâmbula de Maria, finca-se agora na estante – feito caminho, feita carinho que retém o sonho distante que antes só existia dentro da ficção.
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Alê Bragion é editor do Diário do Engenho
Prezado Alexandre,
Estimo que esteja bem!
Crônica maravilhosa. Agradeço pela oportunidade de uma leitura tão serena quanto cativante, nesta manhã ensolarada e já bem quente. Confesso que corri à estante para rever algumas obras compradas também em sebos e suas dedicatórias, expressões de histórias a se recontar.
Com profunda amizade, Adelino
Belíssima crônica que reverbera o texto mágico de Mia Couto e nele Maria aflorou no entrecruzar dos caminhos entre Moçambique e Piracicaba e as palavras de Mia e Alexandre.
Maravilha, Alê!
Amei o “estilo Mia Couto”, acrescentado com seu talento e sensibilidade.
Maria, Mia, Terra Sonâmbula, que vontade me deu de conhecê-los.
Como mulher e Maria me senti celebrada também.
Parabéns!
Escreva e nos encante mais!
Com afeto,
z.
me fez lembrar do poema cantado de Roberto Carlos:
E não lhe chamaram assim
Como tantas Marias de santas
Marias de flor, seria Maria
Maria somente, Maria semente
De samba e de amor
Não era noite não era dia
Só madrugada, só fantasia
Só morro e samba
Viva Maria
a capacidade de transformar simples acontecimento em historia gostosa de ler e cheia de reflexões mostra o potencial do autor, parabéns!
Obrigado aos amigos pela gentileza. É sempre bom ter amigos generosos por perto! Abraços!
Alexandre muito interessante sua cronica, e o nome Maria particularmente me soa forte. Tive mãe Maria e minha filha também Maria. O que dizer desse encontro do leitor e o livro: chegou em mãos certas, Alexandre o Grande…………..muito bom………..abraços
Obrigado, Miriam! Valeu pelo carinho! Bom fim de ano!
Uma delícia de ler!
abraço