Nomadland – e a vertigem do desejo

Nomadland – e a vertigem do desejo

Nomadland, com a sempre ótima Frances McDormand, é desses filmes necessários. Necessário de ser visto, de se ter sobre ele alguma reflexão. Que flerte com a sensibilidade da obra que fala do particular para dizer de todos nós. Lento – como a apreciação e absorção de coisas mais relevantes quase sempre exige. De uma melancolia que pede – e leva a –movimento, deslocamento. Estradas, país afora; continentes internos por desbravar.

As reações a ele não tardaram. Estreou em setembro de 2020 no Festival de Cinema de Veneza, e lá levou o Leão de Ouro . Também ganhou o People’s Choice Award no Festival Internacional de Cinema de Toronto e dois troféus no Globo de Ouro (Melhor Filme de Drama e, para a sino-americana Chloé Zhao, Melhor Direção). Baseado no livro de Jessica Bruder (Nomadland: sobrevivendo à América no século XXI, 2017), é regido pelas lentes de Zhao e o olhar do diretor de fotografia Joshua James Richards, em um mergulho no estilo nômade, maneira de viver que tem feito adeptos nos EUA e entre nós também.

Como pano de fundo a grande recessão de 2007-2009 nos EUA, com o estouro da bolha imobiliária local. Fern, a personagem de Frances McDormand, passa por esse colapso econômico em uma área industrial no interior de Nevada. Viúva, e tendo sido fechada a fábrica que sustentava a cidade, ela acaba partindo da decadente Empire. Põe suas coisas em uma van e ruma, nômade em tempos modernos, para fora da sociedade dominante.

Nômade é aquele sem casa ou que não se fixa muito tempo num lugar. Fern se define como “sem casa”, não como “sem teto”. Meu teto apenas não está sempre num mesmo lugar, parece dizer. Uma marca original nômade –dos criadores de animais desapegados da agricultura, que os fixaria à terra –é a desconsideração a fronteiras nacionais na busca por melhores pastagens. O nômade contemporâneo talvez esteja rompendo outro tipo de fronteiras.

A parecença do nome da personagem de Frances McDormand (Fern) e o nome igual da pessoa vivida pelo ator David Strathairn (David) nada têm de acaso. É um recurso para que os dois, mais que interpretar suas personagens, se fundem a elas. Os demais participantes, como Linda May, Swankie e Bob Wells, não são atores profissionais, mas nômades na vida real, e que imaginavam que Fern e David de fato também o fossem. Daí a curiosa particularidade desse filme: a realidade, ao representar a si, projeta-se ficcional via o documental. Com atuações dirigidas para dentro, sem maiores explosões ou externalidades, mas precisas, sensíveis e meticulosas.

Com longos planos e poucos diálogos, os enquadramentos, a luz, os silêncios e, muito especialmente, o flanar se fazem potentes. Em Nomadland a vitimação não é opção. Nem sob justificativa dos efeitos nocivos do governo, nem da sociedade, tampouco dos percalços da vida. Oportunidades de reintegração ao sistema até se apresentam. Mas há algo para além do mero estado de deriva, comum em situações easy rider. É algo da ordem do desejo trazido à tela.

Se “a angústia é a vertigem da liberdade”, no dizer de Kierkegaard, aquela é o preço a ser pago por esta. Custo por se assumir a demanda do desejo, encarando o sintoma – emersão do sofrimento – recalcado por essa angústia. Os nômades de Nomadland, tendo em Fern sua maior expressão, parecem se conduzir numa mobilização assim operada. Ela claramente bordeia sua angústia e visita horizontes de possíveis escapes (como o conforto em um par afetivo com David ou morar na casa de classe média com sua irmã). Não se reconhecendo nessas opções, ela faz nessa angústia sua inscrição. Fern na verdade está longe de viver sem rumo. O que a sustenta é a constituição de escolhas.

Nomadland põe em tela justamente tal articulação do desejo. É desde aí que Fern e outros nômades podem vislumbrar a liberdade. Uma das personagens a exerce na vivência que dá a ter com o suicídio do filho. Outra, ao se a ver com o que quer fazer perante o prenúncio da morte próxima. A morte, esse ponto inarredável de cada um, permanece aí: algo não contornável. Mas o exercício de vida dessas pessoas/personagens reside no se fazer sujeitos, mesmo diante dela.

Não se assujeitando, tomam para si as rédeas de seus respectivos momentos. Ressignificam o que lhes é trazido pela vida, pautados pelo vínculo estabelecido com o desejo. O que não implica negara dor inerente a tais situações. Trata-se, isso sim, de se encontrar em lugar próprio da sua singularidade, fruto de deslocamento – o movimento a fronteiras novas de si. Independente do que se tenha por teto sobre as cabeças.

Nomadland, drama, EUA, 2020, 1h48. Dir.: ChloéZhao. Com Frances McDormand, David Strathairn, Linda May, Swankie e Bob Wells.

Heitor Amílcar é psicanalista membro do Inst. Vox de Pesquisa em Psicanálise. – SP.

( hei.amil@gmail.comInstagram )

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *