No chão de fábrica, os operários depois de 64

No chão de fábrica, os operários depois de 64

Como o regime militar trouxe reflexos para a vida fabril e corrompeu a relação patrão x empregado nos anos 1960.

É tempo de revisitar nossa história. Março de 1964. Março de 2024. Lá se vão seis décadas do início do regime militar que comandou o Brasil por 21 anos. Quanto mais nos distanciamos dessa data, corremos dois grandes riscos: o esquecimento e a distorção da narrativa dos fatos.

Entre 1964 e 1985, a sociedade brasileira viveu um período no mínimo conturbado. Uma sucessão de cinco generais no alto comando do poder resultou em uma das maiores quebras democráticas da nossa história. Sem falar nas perdas sociais causadas por políticas econômicas ineficazes, no esgarçamento do tecido político resumido a uma realidade artificial e bipartidária, além dos reflexos nas relações trabalhistas, no sucateamento do sistema educacional e assim por diante.

Tudo isso condicionado e conquistado às custas de censura e muita repressão política, principalmente a partir do Ato Institucional nº 5, o AI-5, promulgado em dezembro de 1968. A partir desse momento, boa parte dos agentes que lutavam por mais diálogo e que buscavam maior participação social passou a viver com medo. Silenciados a partir de perseguições, cassações e prisões arbitrárias, professores, trabalhadores da indústria, sindicalistas, agentes culturais, jornalistas, estudantes universitários e secundaristas, todos que procuravam se manifestar – nas ruas e pela imprensa – passaram a conviver com um sistema vigilante proposto a cercear qualquer manifestação contrária à ordem vigente. Arriscaram-se por uma abertura política que demorou a chegar. De Norte a Sul, nas capitais e nas cidades do interior, lideranças sociais, religiosas e partidárias conviveram entre o dever da luta pela democracia e a repressão política.

Interior

O barulho começou em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, mas rapidamente se espalhou por municípios que na época já apresentavam uma cena urbanizada, uma rede de instituições democráticas estabelecida, uma imprensa diária, escolas e universidades, partidos políticos e sindicatos com grande inserção social. Em Piracicaba, por exemplo, a década de 1960 foi marcada pela modernização urbana, com a abertura e duplicação de grandes avenidas e instalação de viadutos. Com os edifícios cada vez mais altos e com uma população urbana crescente, os diálogos acerca daquilo que acontecia nos grandes centros urbanos ressoaram por aqui.

Nas fábricas

A pauta nacional chegou ao interior e as consequências desse monólogo sustentado pelo silenciamento implodiu a relação entre patrões e empregados, por exemplo. Tratamos desse tema, de forma ampliada, na dissertação de mestrado “Notícia impressa x histórias de vida”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Estadual Paulista em 2002. Alguns anos mais tarde, parte dessa pesquisa foi publicada no livro “Piracicaba, 1964, o golpe militar no interior”, publicado pela Editora UNIMEP e com versão digital gratuita. Para esse livro, que se apresenta como uma coletânea de artigos sobre a época da ditadura militar em Piracicaba e anos posteriores, tive a honra de assinar dois artigos. Em um deles, sob o título “No chão de fábrica e nas salas de aula, a mesma intolerância”, apresento parte das declarações originadas de quem vivenciou as consequências da ditadura militar no ambiente operário. O ambiente operário piracicabano representa com clareza como se deram as relações sociais em Piracicaba durante a ditadura.

Segundo dados da delegacia de polícia local, em final de 1959 Piracicaba contava com uma população próxima dos 95 mil habitantes, dos quais 9.500 operários da indústria. Pela importância conquistada diante do cenário econômico, os líderes sindicais ganharam projeção não somente na cena fabril, mas na comunidade como um todo. Assim, o cenário político nacional projetou-se de maneira particular nas fábricas piracicabanas. A atuação das lideranças foi diretamente combatida pelo empresariado. O resultado dessa perseguição teve dois efeitos possíveis: prisão ou impedimento de seguirem na presidência dos sindicatos.

A base do artigo mencionado anteriormente, e também da dissertação de mestrado, está constituída de entrevistas com vários desses trabalhadores. Em resumo, “nos depoimentos desses trabalhadores, fica evidente a estratégia de desqualificar essa liderança representada pelos sindicatos logo no início do regime. Tachá-los de comunistas e subversivos, empregando um discurso em sintonia com a retórica da comunização foi uma saída que de fato funcionou”. A vigilância e outras ações mais repressivas como prisões e ameaças à integridade mental e física, eram realizadas nos movimentos grevistas, nas assembleias e na porta das fábricas.

Na prática, o conjunto do relato desses entrevistados permitiu concluir ainda que havia uma nítida estratégia de desqualificar esses trabalhadores, colocando-os em uma posição de dúvida e conflito perante os companheiros de fábrica. Uma vez rotulados de “comunistas”, “subversivos” e “perseguidos”, estaria em franca decadência a liderança anteriormente conquistada.

Voltamos a março de 2024. O que aprendemos nas últimas seis décadas? Deixamos de fato alguns fantasmas para trás? No chão de fábrica, quem são os operários de hoje e como eles se relacionam com a classe patronal? Seis décadas após o início do regime militar, ainda vivemos em uma frágil democracia, que infelizmente se abala diante de qualquer discurso minimamente oportunista e populista. Portanto, relembrar e revelar fatos de um passado não tão distante, nos obriga manter um estado de alerta diante de riscos apresentados por um jogo político constantemente instável.

Leia gratuitamente e na íntegra o artigo “No chão de fábrica e nas salas de aula, a mesma intolerância” acessando o download gratuito do livro em  http://editora.metodista.br/publicacoes/piracicaba-1964 .O capítulo encontra-se entre as páginas 174 e 201 e nele se abordou também como a repressão teve reflexos na vida estudantil secundarista de Piracicaba.


Caio Albuquerque é jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista. É co-autor do livro “Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior”.

 

(Foto de capa: Operários em São Bernardo do Campo – 1964.  Acervo do Centro de Memórias de São Bernardo do Campo).

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