A Poesia como Forma de Entender a Ditadura e seus Horrores

A Poesia como Forma de Entender a Ditadura e seus Horrores

História também se aprende pela literatura. Ou por poesia. Falar do golpe militar de 64 pode ser, também, um exercício das aulas de português.

Afinal, como seria a reação de adolescentes ao saber que, no Brasil, também houve fogueiras em que se queimaram livros? E livros de autores que, em muitos anos, integraram a lista dos vestibulares, como Jorge Amado e José Lins do Rego. É verdade que não aconteceu em 64 e sim na ditadura de Vargas, quando, em 1937, na Bahia, após apreensão de 1.766 exemplares de obras dos dois autores, considerados “simpatizantes do credo comunista”, todas (como Capitães da Areia, Doidinho, Menino do Engenho, Cacau, Suor entre outros) foram incineradas por ordem do comandante da 6ª Região Militar. Isso explicita o que acontece nas ditaduras? Depois do golpe militar de 64, levantamentos apontam que ao menos 200 livros também foram objeto da censura e recolhimento ou proibição de circular no país (entre eles Feliz Ano Novo, de Rubens Fonseca, O casamento, de Nelson Rodrigues e Roque Santeiro, de Dias Gomes).

Como sugestão, fica pelo menos a apresentação de dois autores consagrados, cujos poemas precisam ser conhecidos também pelos mais jovens, entendendo-se o seu contexto e o seu significado mais amplo.

 

Os estatutos do homem (ou Ato Institucional Permanente, de Thiago de Mello)

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.

agora vale a vida,

e de mãos dadas,

marcharemos todos pela vida verdadeira.(…)

 

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade, 

e a alegria será uma bandeira generosa 

para sempre desfraldada na alma do povo (…).

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.”

(acesso ao poema integral em

http://www.dhnet.org.br/desejos/textos/thmelo.htm )

É também de Thiago de Mello os versos: “Faz escuro (já nem tanto),/vale a pena trabalhar./Faz escuro mas eu canto/porque a manhã vai chegar”, gravados por Nara Leão no disco “Manhã da Liberdade” (https://www.youtube.com/watch?v=sSAwZnBiisc)

São de Affonso Romano os versos tornados clássicos do poema “Que país é este?”, que pode ser acessado na íntegra em https://universidadelivredoalvito.xyz/poema-de-hoje-que-pais-e-este-affonso-romano-de-santanna/ e dizem: “uma coisa é um país, / outra um ajuntamento./ Uma coisa é um país, / outra um regimento./ Uma coisa é um país, / outra o confinamento” (…)Uma coisa é um país,/ outra um fingimento./ Uma coisa é um país,/ outra um monumento./Uma coisa é um país,/ outra o aviltamento.”

 Seu grito de poeta contra os tempos da ditadura tornou-se denúncia cheia de indignação também no poema “Os desaparecidos”, que pode ser acessado na íntegra em https://geracaoai5.blogspot.com/2010/12/os-desaparecidos-poema-de-affonso_10.html e professa:

“De repente, naqueles dias, começaram

a desaparecer pessoas, estranhamente.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.

Ia-se colher a flor oferta

e se esvanecia.

Eclipsava-se entre um endereço e outro

ou no táxi que se ia.

Culpado ou não, sumia-se

ao regressar do escritório ou da orgia.

Entre um trago de conhaque

e um aceno de mão, o bebedor sumia.

Evaporava o pai

ao encontro da filha que não via.

Mães segurando filhos e compras,

gestantes com tricots ou grupos

de estudantes desapareciam.

Desapareciam amantes em pleno beijo

e médicos em meio à cirurgia.

Mecânicos se diluíam

— mal ligavam o torno do dia.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias (…).

O desaparecido é como um rio:

– se tem nascente, tem foz.

Se teve corpo, tem ou terá voz.

Não há verme que em sua fome

roa totalmente um nome. O nome

habita as vísceras da fera

Como a vítima corrói o algoz.

E surgiam sinais precisos

de que os desaparecidos, cansados

de desaparecerem vivos

iam aparecer mesmo mortos

florescendo com seus corpos

a primavera de ossos (…).

Não há cova funda

que sepulte

– a rasa covardia.

Não há túmulo que oculte

os frutos da rebeldia.

Cai um dia em desgraça

a mais torpe ditadura

quando os vivos saem à praça

e os mortos da sepultura.”

Há que se lembrar, ainda, de um poeta bem menos conhecido, Pedro Tierra (como sempre assinou Hamilton Pereira da Silva, um dos autores da Missa da Terra Sem Males), que produziu seus versos falando diretamente das torturas e das prisões que enfrentou, entre 1972 e 1977.

“Cá está o capuz sobre a grade.

Traz consigo uma segura

promessa de dor. Na boca

do sentinela em meio riso.

Cá está uma parcela da noite

Cobrindo o meu rosto.

A mão do meu inimigo

Determina o caminho (…)

o degrau a mais, a queda

o riso dos soldados,

o gesto perdido buscando

uma porta que não houve.

(…) o ferro das portas,

o fio dos dínamos.

No dorso a marca

desses dias de sombra (…)” 

(O capuz – disponível na íntegra em Poemas do Povo da Noite).

 

A poesia não é instrumento apenas de lirismo, de declarações de amor, de festejar a vida. A poesia transformou-se, em tempos de ditadura, também em espaço de angústia, de denúncia, de tentar escapar. É tempo de recuperar também estes versos, que expressam, fortes e datados, o que o Brasil viveu com os militares no poder.

 


Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

3 thoughts on “A Poesia como Forma de Entender a Ditadura e seus Horrores

  1. Os artistas sempre colocando a Arte,seu dom mais valioso,contra todas as formas ditatoriais de governo.Assim foi com a Abolição,Independência e em outros movimentos historicos.O engajamento deles lutando por uma identidade nacional,pelos brasileiros,através da beleza e da harmonia.

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