Pode a cultura, em um dado momento histórico, simplesmente retroceder? É possível que a história ande para trás, mergulhando a sociedade em uma decadência civilizacional sem precedentes? A noção do movimento da história como dialético pode contemplar um retrocesso cultural tão agudo e intenso? Como entender, então, a concepção de um espírito absoluto, capaz de despontar como síntese de todo um período, fazendo a história se movimentar dialeticamente, como pensou o filósofo Hegel? Parece que todas as referências foram vencidas e agora estamos sendo lançados em um grande abismo civilizacional. Talvez tudo isso seja justamente expressões da pós-modernidade.
É mesmo possível travar este debate tendo como foco diferentes aspectos da cultura contemporânea. Mas neste breve espaço de diálogo e reflexão, vamos apenas trazer algumas anotações sobre o campo religioso. Reconhecendo o lugar de relevância da religião cristã no contexto da formação da identidade da cultura brasileira, é preciso indagar, filosoficamente, o que representa, tanto para a cultura em geral quanto para a perenidade do cristianismo em particular, a explosão de uma miríade de pregadores neopentecostais, que agora alcançam as massas, impulsionados e popularizados pelas redes sociais? O que sobrará da essência do cristianismo após a apoteose midiática?
Há uma questão preliminar que deve ser observada: a intensa e original produção teológica no Brasil – e na própria América Latina – em torno da Teologia da Libertação. Marcando o pensamento teológica na América Latina, a Teologia da Libertação talvez seja a mais relevante produção teológica do século XX e início do século XXI. A partir de pesquisas históricas e análises exegéticas rigorosas, a Teologia da Libertação aproximou, de maneira definitiva, a fé da política. Tendo o pobre como lugar hermenêutico, a Teologia da Libertação identificou o cristão, em uma fé engajada e militante, como o novo sujeito histórico, o agente da transformação social, capaz de impulsionar a grande roda da história, apontando para a utopia deum tempo de libertação e plena justiça. É importante ressaltar que a Teologia da Libertação sempre esteve alicerçada em uma exegese rigorosa, produzindo uma compreensão hermenêutica fundamentada, crítica e coerente.
O avanço do neopentecostalismo, inclusive no contexto também da Igreja Católica, tem produzido um processo de apagamento e esquecimento do grande legado teológico construído pela Teologia da Libertação. Sendo um pouco mais justo pode-se dizer que a experiência religiosa neopentecostal representa um afastamento inclusive das concepções teológicas mais tradicionais. A leitura ao pé-da-letra, fundamentalista, foi questionada desde os primeiros pensadores do cristianismo, ainda no contexto da Antiguidade. O conhecimento mais básico da tradição teológica revela a busca por uma compreensão mais profunda da revelação cristã. No limite, toda a imensa produção teológica, em mais de dois mil anos de tradição do pensamento cristão, tem sido ignorada e desprezada, em linhas gerais, pela experiência religiosa neopentecostal.
Mas o problema é que talvez algumas vertentes do neopentecostalismo já nem mais se preocupem com qualquer fundamentação bíblica. O debate sobre a coerência ou não das teologias da prosperidade, retribuição e domínio parece nem ter mais sentido e relevância, tendo em vista que, no limite, a pregação neopentecostal não demonstra a mínima preocupação com qualquer fundamentação teológica. O que se vê é a mais total ausência da reflexão teologal. Simplesmente parece que a pregação neopentecostal pode dizer e defender qualquer coisa, sem nenhum compromisso com a verdade teológica da revelação cristã.
O fenômeno de se falar em línguas, elemento essencial das igrejas neopentecostais – erigidas sob o signo de pentecostes –, sempre teve, mesmo na teologia mais tradicional, um sentido figurado e alegórico. Agora, literalmente, os pregadores deste novo cristianismo falam em línguas estranhas, totalmente incompreensíveis e sem nenhum significado minimamente teológico ou pastoral. Revivendo experiências primitivas do antigo paganismo, sob o dom das línguas, o culto religioso tem sido reduzido a um movimento de mera catarse coletiva, sem nenhum compromisso ético com uma vida de comunhão, em uma sociedade marcada pela partilha fraterna dos bens espirituais e também materiais.
Na hermenêutica da Teologia da Libertação, em uma perspectiva sociológica, amparada em consistente exegese, o dom das línguas assume o sentido da linguagem universal do amor e da justiça, compreensível para todas as pessoas e sociedades. Falar em línguas significa assumir o compromisso cristão de amor ao próximo, promovendo a justiça. Mas parece que para os cristãos neopentecostais a teologia pouco importa, o fundamental talvez seja a experiência mágica, de uma religião que se revela capaz de trazer respostas imediatas e individuais para os problemas materiais próprios de um mundo profundamente desigual, cindido pelas injustiças sociais e ambientais. Com o neopentecostalismo midiático das redes sociais a teologia parece ter encontrado o seu ocaso.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.