Papai Noel suava em bicas por debaixo da barba que, diziam seus inimigos, era postiça (sim, por aqui Papai Noel tem inimigos – talvez por conta da cor de sua roupa, vai saber…). Descendo pela Rua Governador, o Bom Velhinho balançava um sino também velho, de lata, desses enferrujados. Nas costas e sobre o peito, Papai vestia um papelão de propaganda barata que anunciava qualquer coisa inútil e porcaria pensada para tirar dinheiro do povo. Caminhando pela Governador, Papai Noel percebeu que as pessoas pouco notavam sua presença. Pelo contrário. Algumas faziam até questão de desviar os olhos, com explícita desconfiança. Tempos difíceis sempre voltam – pensou. Mas Noel não se abateu. Pingando a suor, continuou a zanzar pelo centro da cidade.
Na esquina da Governador com a XV de Novembro, Papai teve de se esgueirar como um rato em meio à multidão que subia pela calçada e se movimentava para todos os lados. Desatento, foi girado pelo povo e rodou três vezes no próprio pé – e só não caiu no chão por que se segurou numa senhora, velhinha como ele, que também passava por ali. Na pressa, Papai se esqueceu de agradecer à boa mulher, que partiu praguejando gostoso alguns impropérios natalinos contra ele. Quando deu por si, carros buzinavam alegres para Papai – e os motoristas da cidade, sempre educados e pacienciosos, colocavam seus braços para fora e cumprimentavam de punhos fechados ao Bom Velhinho que demorava a sair da rua. Que gente educada, pensou Noel sem conseguir entender bem o que gritavam.
Depois, e após quase ser atropelado por um carro que virou a esquina sem dar seta – coisa rara por aqui, como também notou Noel –, Papai desceu pela XV e virou à direita, na Avenida Armando de Salles. Por sorte não chovia e Papai Noel pode andar por ali sem medo de se afogar nas enchentes que alegram e embelezam aquela região há tantas gestões. Pela avenida, ônibus lotados de uma gente alegre e festeira – e que não liga a mínima para a superlotação nos ônibus, para falta de linhas nem para as condições precárias do transporte público – adornavam a tarde na cidade em direção ao Terminal Central. Que gente fantástica, pensou Noel. Que privilégio deles poderem viver numa cidade feliz e tão bem estruturada assim.
Já cansado de tanto andar e morrendo de calor, Noel seguiu pela Armando de Salles. Rodas de suor debaixo dos braços revelavam a condição pouco saudável de Papai – apesar de que, diga-se de passagem, não portava ele a grande barriga que tanto o caracteriza em suas imagens pelo mundo. Na verdade, Papai Noel estava era magro demais para ser Papai Noel. A barba, agora colada no rosto lavado de suor, denunciava mesmo que Papai Noel, de fato, usava uma barba postiça – o que, para ele, talvez pouco ou nada mudasse em sua vida. Afinal, a roupa de Papai – com alguma lantejoula escapando aqui ou ali – parecia-se mais com uma fantasia de escola de samba do que com a roupa real da tradição natalina norte-americana imposta ao mundo por meio de uma garrafa de refrigerante.
Em direção à Rodoviária, Papai Noel se espantou com a quantidade de igrejas espalhadas pela avenida. Que terra santa, pensou! Uma cidade assim, de pessoas tão religiosas, deve mesmo ser uma cidade abençoada! Até mesmo um cinema virou igreja, ora vejam! – refletiu consigo Papai Noel. Então, certo de que o amor, o respeito, a união, a fraternidade, a justiça e a equidade imperam numa cidade onde abundam igrejas em cada esquina e os gestores só pensam no bem comum e são reeleitos mandato após mandato, Noel percebeu que não teria ele muito mais a acrescentar por aqui – e poderia ir embora, em busca de uma cidade menos perfeita e à qual ele pudesse alegrar ou ajudar de alguma forma.
Enquanto esperava o ônibus na Rodoviária, torcendo para não chover, Noel sentou-se à mesa num boteco. Depois, pediu uma cerveja gelada. Tirou o cartaz do peito. Puxou a barba postiça. Despiu a velha capa vermelha cheia de lantejoulas. Descalçou o tênis gasto. Acendeu um cigarro e deixou-se ficar ali – de calça jeans e camiseta regata branca. Esperando. Esperando. Talvez esperando um ônibus que o levasse para outros natais mais carentes e menos alegres do que o nosso. Talvez esperando um tempo em que o Natal, de alguma forma, nesta e em outras cidades como a nossa, pelo país, volte a fazer algum sentido.
Alexandre Bragion é editor do site Diário do Engenho.
(Publicado também em A Tribuna Piracicabana. 24/12/19).