O que dizer ou não dizer a quem conta seus mortos, a quem perde amigos e parentes pelos caminhos tortos da serpente do destino que engole a todos num átimo, em ato certeiro, sorrateiro e contínuo? Como usar a língua quando a língua falta, quando a língua salta em falso na hora de dizer o indizível ou se enrola em si numa reverência de pesar? Meus pêsames? E o que me pesa nesse falar desconexo que é quase um não falar? Desconforto linguístico, vocábulo triste dado aos entes dos idos. O pesar é registro sem sentido de que nada somos diante do místico-corpóreo a transmutar.
Pesa na base da língua o pesar e seus pêsames. Sua origem em raiz – latina, palatina, etimológica e clandestina – nos chega pela junção, do espanhol, do conjugar em ação daquilo que pesava no coração, dentro de cada um, ao se ter a obrigação de se manifestar sem sorte diante de outrem na hora da morte: “pesame” – dizia-se então. “Pesa-me” aprendemos nós, depois. E de “pesa-me” em “pesa-me”, expresso na amplidão da dor alheia, a expressão virou fusão, substantivo que semeia e não semeia o que sentimos – ou não sentimos – em relação ao sofrimento do outro: sensação sem razão que nos planteia o choro, que nos coloca em pusilânime condição: “meus pêsames”, confortamos – pesa em mim sua aflição.
Nunca consolei tanto, como agora, aos que em pranto a perda de seus amores chora. “Meus pêsames” – e sua variação “meus sentimentos” – cimentam e estampam meu falar pelas redes, meu escrever nos jornais, meus registros vividos e difundidos em meio aos meus próprios ais. Atente. Observe. Na epiderme da letra, na vibração da palavra, na oratória diária que nos acompanha há mais de um ano nesta catástrofe sem definição, “meus pêsames, meus sentimentos” tornaram-se repetição que concretiza na literatura das horas o que fazemos virar – por salvação própria – uma espécie de ficção. Afinal, o que de fato nos pesa, o que de fato sentimos vendo os corpos, em volume, cada qual em seu caixão?
Pesa-nos o descaso do povo com o seu semelhante – no instante em que as ruas se cruzam de gentes ásperas e sem máscaras? Pesa-nos a tristeza sentida ao vermos que o mercado, o adorado deus-mercado, vale mais – para tantos – do que a vida? A todo momento, os “sentimentos” que damos carregam o peso dos falsos enganos, dos miraculosos que falaciosos tratamentos? Qual o peso que se sente quando se vê morrer o povo nas filas dos hospitais, sem ar para respirar e nada mais? Computamos nesse pesar o que erramos, o que pautamos maior do que o existir do humano? Ai, língua que não dá conta! Ai, idioma incapaz! Seguimos dando falsos pesares e sentimentos cada vez mais.
Pesa-me ainda, por fim, saber dos exercícios políticos de quem pratica o morticínio por ideologia ou opção. Falta-me, frente a isso, organização mental e verbal que não me exponha ao risco do prejuízo da falta de educação. Como registrar em poesia, na crônica pesarosa desta nação, a norma fria imposta pelos genocidas de plantão? “Meu sentimentos”, também digo a eles e sobre eles – porque já estão mortos em vida (apesar de eleitos) – e para eles nada reservo em mim mais do que um pesar de inexprimível e indescritível inscrição.
Constritos (os sensíveis), renitentes, resilientes ou não, sigamos – apesar dos pesares. E que a língua viva – nunca morta – possa ser a nossa porta para algum tipo (mesmo que ilusório) de salvação. Pesada ou não (lembrando “que os anjos nunca dão pesares”, como escreveu o poeta baiano), “meus “sentimentos,” consolação que agora nunca tarda, é expressão que hoje, tal como o anjo do poema barroco, mais me tenta do que me guarda.
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.
(Crônica publica originalmente em A tribuna Piracicabana – 25/03/21)
– foto de capa: Alê Bragion