Na viagem da leitura, na navegação pelas palavras e tramas do texto, são as narrativas de viajantes – dos reais ou ficcionais – as histórias que talvez mais nos façam sentir que, de fato, adentramos a outros mundos enquanto lemos e vamos desbravando roteiros e vivenciando jornadas ao lado de protagonistas que, no corpo etéreo da ficção, transitam por um fictum que nos prende a alma e a atenção como poucos.
Não à toa, romances do “mundo adulto” e que abordam as mais insólitas viagens acabaram consagrados também junto a um imenso público infanto-juvenil. Nesse sentido, vale lembrar que (por motivos que neste momento não nos cabem aqui analisar) Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, por exemplo, é único livro recomendado pelo preceptor de Emílio no clássico livro de Rousseau. A jornada de Alice no País das Maravilhas, de Carroll, também foi praticamente sequestrada pela leitura juvenil através dos tempos e As viagens de Gulliver, de Swift, ganharam até uma adaptação em desenho animado de Hanna-Barbera.
Na trilha desse gosto, na tradição do universo que se convencionou chamar de literatura infanto-juvenil, as jornadas e viagens – como não poderia deixar de ser – tornaram-se os cenários ideais para que as protagonistas – quase sempre mirins – envolvam-se em aventuras capazes de prender como poucas a atenção de leitores e leitoras em fase de formação e letramento.
Mais do que isso, as narrativas que envolvem jornadas por mundos paralelos, mágicos ou mesmo fantásticos (na essência do termo estruturado por Todorov) mostraram-se ser capazes de atrair os olhos e a mente de muitas crianças e adolescentes ao longo dos tempos, criando neles o desejo constante por sentirem um sabor todo especial que nasce daquela sensação boa que a expressão “navegar é preciso” parece querer revelar – sendo utilizadas muitas vezes, tragicamente (diga-se de passagem), como instrumento pedagógico moralizante e nacionalista.
Dentro desse “cânone” infanto-juvenil – se assim pudermos chamar tal tradição –, destacamos aqui dois livros que, entre os pioneiros nessa seara, envolvem viagens, protagonistas crianças e muito de um nacionalismo calcado numa tática de “pedagogização cívica” que se dá por meio da apresentação de símbolos pátrios que vão desde a descrição de uma determinada geografia nacional a uma iconografia patriótica milimetricamente pré-definida. Em específico, nos referimos aqui ao clássico francês Le tour de France par deux Enfants (de 1877, escrito por Augustine Fouill) e sua “versão abrasileirada” intitulada Através do Brasil (do não menos patriótico Olavo Bilac, escrito em 1910). Nesses romances – que merecem ser tema para outro texto – uma dupla de garotos viaja por seus países respectivos em busca de suas famílias (ou do que restou delas) enquanto vão “conhecendo” uma nação repleta de possibilidades de aventuras e, claro, sempre disposta a desenvolver na criançada o tal amor à pátria.
Dialogando com essa tradição – que tem raízes no XIX e no começo do XX –, mas ao mesmo tempo se distanciando dela nos objetivos que estão no para além da trama, A Jornada de Pablo, escrita por Rafael Gonzaga e publicada pela editora Lyra das Artes no fatídico final de 2020, apresenta igualmente em seu enredo também dois meninos que viajam por reinos distantes carregados de elementos simbólicos e identitários. No entanto, e felizmente avesso ao nacionalismo que caracteriza os livros do cânone infanto-juvenil aqui apresentados, as protagonistas criadas por Rafael Gonzaga vivem suas aventuras num mundo que tem suas raízes fincadas numa ancestralidade africana que, todavia, pouco conhecemos e que, por sua vez, pertencem também a outras pátrias – igualmente fundamentais para nossa origem enquanto nação, porém também por nós desconhecidas ou mesmo preconceituosamente desprestigiadas.
Num exercício patriótico invertido, Gonzaga constrói uma narrativa de exaltação a elementos basilares de nossa cultura e que, todavia, cotidianamente desenvolvem-se à margem de nossa configuração pré-formatada de povo que se quer (falsamente) descendente de um exclusivismo branco-europeu. Assim, numa jornada corajosa em busca de símbolos de uma tradição sufocada e oprimida, mas efetivamente presente em nosso caldo cultural , seguem as protagonistas dessa jornada – a saber, os meninos Pablo e… Exu!
Dispostos a libertar a cultura africana e suas nações presas dentro da máquina fotográfica do oportunista predador europeu – representado pelo senhor Picot, o vilão da história –, o menino Pablo e o orixá Exu (virado menino) vão se embrenhar por reinos distantes e ao mesmo tempo tão presentes na alma nacional brasileira. Para essa tarefa, contarão com a ajuda de outros orixás poderosos – como Oxossi e Xangô – e se valerão de instrumentos mágicos, como uma bandeja artesanal capaz de predizer o destino. Repletos de encontros com a cultura africana e ancestral que está nas raízes de nosso país e que chega até nós pelos irmãos africanos aqui escravizados, a jornada desses dois pequenos meninos funciona também, e por que não, como uma aula de cultura africana para crianças e adolescentes brasileiros – fato que, como dissemos, faz A Jornada de Pablo, felizmente às avessas, dialogar de maneira curiosa com a tradição “pedagógica” e “nacionalista” da literatura infanto-juvenil brasileira e mundial.
Com um texto de atmosfera jovial, em linguagem direta e sem rebuscamentos ou ornamentações linguísticas desnecessárias, o livro encanta também pela beleza de suas ilustrações para lá de bonitas e que conversam natural e essencialmente com a linguagem verbal de Gonzaga, como num encontro todo especial entre duas linhas ancestrais feitas de carinho e cuidado. Fruto de pesquisa laboriosa desenvolvida pelo autor (que é historiador, doutor em Cosmogonias e Artes Africanas) as referências aos elementos fundantes da ancestralidade religiosa africana que o enredo aborda aparecem ora explicadas na própria narrativa – pelas personagens – ora levam a um glossário caprichado ao final do livro – cuja publicação recebeu apoio do Programa de Ação Cultural de São Paulo (PROAC).
Tal como faz Exu – no enredo e na tradição religiosa – o livro é uma pedra que, lançada hoje, atinge em cheio uma oportunidade perdida no ontem de nossa literatura infanto-juvenil. Que essa pedra, de Exu, de Pablo e de Rafael Gonzaga e da editora Lyra das Artes possa também atingir o amanhã – abrindo caminhos para que novas escritas acerca da cultura africana, que tanto nos compõem e que tanto desconhecemos, possam aparecer e vir a construir um novo cânone nessa vertente tão necessária para este e tantos outros momentos de nossa história. Que Pablo e Exu abram, assim, os nossos caminhos de leitores e cidadãos mais sabedores do arcabouço cultural, humano e social que os compõem. Laroiê!
A Jornada de Pablo
Rafael Gonzaga, 2020
Ilustrações e capa – Poliana Fernandes
Projeto gráfico – Estúdio Cordélia
Projeto Editorial – Lyra das Artes
ISBN: 978-65-990986-3-5
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho