Idolatria e Fetichismo: faces de um mundo moderno – Adelino Oliveira

Cuidado! Guardai-vos de toda ganância: não é pelo fato de um homem ser rico que ele tem a vida garantida pelos seus bens. (Lc 12, 15)

 

 O contemporâneo, de maneira velada e sutil, apresenta armadilhas e desvios, a conduzirem para uma existência marcada por desequilíbrios e vícios. Talvez, a questão do dinheiro – mais especificamente a mensuração de seu real valor – configure-se como um dos pontos nevrálgicos a balizarem, de forma negativa e equivocada, as relações humanas.

 De fato, o dinheiro, para alguns gurus da avareza e da usura e seus seguidores – cegos por uma concepção mágica de realidade –, tem assumido o status de verdadeira divindade, na medida em que aparece como referência única para toda e qualquer tomada de decisão. O dinheiro abarca também uma dimensão simbólica, a mexer com o imaginário. O que atrai e fascina é a perspectiva do acúmulo ao infinito, não para comprar infinitamente coisas, mas a simples ideia de ter algo (dinheiro) que não pode ser mensurado. Nesta ótica, ressalta-se, as decisões passam a ser pautadas exclusivamente no retorno econômico.

Neste ponto, é que se torna relevante discutirmos as novas formas de idolatria e fetichismo. O tema da idolatria está posto na tradição do Antigo Israel. O Livro do Êxodo (Ex. 32) traz a narrativa da postura desesperada do povo que, ao se sentir abandonado por Moisés, constrói para si um bezerro de ouro, curvando-se diante dele, reverenciando-o como uma autêntica divindade. O texto veterotestamentário denuncia a idolatria, que consiste, grosso modo, na adoração de algo que falsamente assume o lugar de Deus, contrariando o mandamento Mosaico a ordenar: “Não terás outros deuses” (Ex. 20, 3), ou ainda, “Não farás para ti ídolos” (Ex. 20, 4a). A questão toda se concentra no fato de que o povo, de maneira ilusória e desviada, canaliza suas esperanças em algo que não é capaz de socorrê-lo, pelo simples fato de ser um mero objeto.

Avançando nesta reflexão, deparamo-nos com o pensador Karl Marx, herdeiro desviado da tradição judaica e poderoso crítico do capitalismo. O pensador em alusão analisa a questão do fetichismo da mercadoria, desvelando a inversão que se opera e é engendrada no processo da relação econômica, dinamizada pelo capitalismo. Neste ponto, o filósofo economista aponta a mercadoria como coisa inanimada, a qual, sob o auspício da ideologia e da alienação, toma vida e autonomia. O mercado passa a ser o principal regulador da vida social. A mercadoria, produto do trabalho humano, torna-se alheia ao homem, este reduzido à condição de apêndice de todo sistema de produção capitalista.

Evidencia-se a proximidade e intersecção entre os conceitos de idolatria e fetichismo. A idolatria de ontem compõe-se no fetichismo de hoje, balizado pela exaltação e apreço pelo consumo exacerbado, pelo conforto desmedido, pelo apego avarento ao dinheiro – já não mais visto como um meio para se alcançar e suprir necessidades e sim como um bem em si mesmo, a ser acumulado infinitamente. O dinheiro foi elevado à categoria de divindade, tornando-se a pedra angular da existência no contemporâneo.

Assim, tanto a noção bíblica de idolatria quanto o conceito filosófico de fetichismo denunciam e apontam para uma lógica de alienação, na qual as dimensões humanas são reduzidas à categoria de coisa. A anulação do humano – a ausência de condições para a manifestação de suas forças criativas – contrapõe-se à perspectiva cristã, a soerguer uma existência plena de sentido e possibilidades, reverenciada por um homem que ama, cria e estabelece relações calcadas em sentimentos reais. Ressalta-se que o cristianismo, com sua profunda ética de amor e serviço, revela Jesus Cristo, Deus encarnado, como única referência absoluta. Tão somente em Cristo e com Cristo, o humano, no cotidiano das relações, descobre a leveza e beleza do existir, a serenidade do amor, a cadência de toda a bondade, toda a perenidade sugerida no encontro consigo mesmo e com o próximo.

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O Autor:

 

Adelino Francisco de Oliveira é mestre em Ciências da Religião. Professor de Ética e Teologia do Colégio Salesiano Dom Bosco e Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba.

Contato: adelino.oliveira@terra.com.br

(no Diário do Engenho, Adelino escreve sempre na segunda quarta-feira de cada mês)

30 thoughts on “Idolatria e Fetichismo: faces de um mundo moderno – Adelino Oliveira

  1. Adelino!
    Muito bacana o texto.
    É incrivel ver a exaltação que o dinheiro recebe.
    Ele nos leva a pensar como estamos agindo perante essas idolatrias.
    Quem idolatramos neste mundo contemporaneo, será somente o dinheiro?

    Abraço!

    1. Prezada Vanessa,

      De fato o contemporâneo cria muitos deuses (dinheiro, poder, sucesso, prazer etc). Precisamos perseverar na caminho da crítica e reflexão.

      Esteja bem!

  2. Prezado Adelino,

    Texto de profunda reflexão e que nos leva a pensar, cada vez mais, em tudo aquilo que é transitório e fugaz.

    Beijos,
    Teresinha

    12 de maio de 2.011

    1. Querida e amada Teresinha,

      Sei o quando você tem se preocupado com o que é perene e imprescindível. As vezes a postura coerente e crítica é exigente…

      Esteja bem!

      Com profundo afeto

  3. Adelino, são reflexões profundas e, mais que isso, muito bem fundamentadas. Infelizmente, não há do que discordar do que escreveu e este tema deveria permear todos os espaços de educação na tentativa – mesmo que utópica -de frear a “categoria de divindade” atribuída aos bens materiais.
    A sua ação é aquela gotinha de água que a andorinha levou para apagar o incêncio na floresta…
    Parabéns!
    Elder de Santis

    1. Estimado Elder,

      Compartilho de suas observações… Sei o quanto você tem atuado no sentido de construir outras referências de valor.

      Esteja bem e obrigado pela interlocução.

  4. Oi Adelino! Confesso que o seu texto me inspirou para muitas ideias que tenho, gostei muito!
    Nessa sociedade em que vivemos, ter reflexões a respeito dos problemas é uma virtude! e está muito ausente..

    Parabéns!!

  5. Adelino, parabéns pelo seu texto, esta muito bonito e interessante.
    Ele me fez refletir sobre minhas idéias e conceitos, principalmente sobre o tema do dinheiro (que, querendo ou nao, envolve a todos, dia a dia).

    Continue assim, parabéns!!

    1. Querida Daniela,

      De fato o cotidiano nos toma… se não ficarmos atentos somos engolidos pela lógica do consumo… Por isso é necessário o contínuo exercício da reflexão.

      Esteja bem!

  6. Caro Prof. Adelino,

    Uma grande reflexão com uma idealização unica, demonstra o ápice da alienação que sobrepõem o individuo ao ponto que ele mesmo perde sua consciência, criando uma massa consumista e obedienta as ideologias impostas, pois o dinheiro hoje em dia é importante, porém não se tem uma medida de o Quanto ele é….

    Abraços,
    Renan

    1. Prezado Renan,

      Compartilho de suas ponderações… como fazer frente à ideologia do consumo? Talvez a reflexão crítica ainda seja uma forma de resistência…

      Esteja bem!

  7. Estimado Prof. Adelino,

    Todas as vezes que escuto suas narrativas ou leio seu texto, tenho a certeza que fiz a escolha certa da busca ao conhecimento, pois me faz refletir e avaliar ainda mais mees conceitos cristãos…

    Parabéns, abraços e ficamos com Deus.

    Naldo.

    1. Prezado Edinaldo,

      Agradeço por sua interlocução… Tem sido de fato estimulante dialogar com você. Aquele que se lança na busca pelo conhecimento, na verdade já se encontrava em tal caminho. Perseveremos no constante diálogo.

      Esteja bem!

  8. Adelino, extremamente interessante sua reflexão.
    Apesar do tema ser uma realidade vivida por todos nós, não havia pensado nele na maneira como o retratou, o jeito como as idéias foram expressas me fizeram inspiraram a refletir. conclui que atualmente, de fato a maioria da população se concentra no material, colocando a si mesmo e todas a suas forças nesse objeto – no caso dinheiro – em partes, como resultado da alienação que sofrem da sociedade, mas em outros pontos, penso também que apesar da alienação ser uma realidade, é possível distanciar-se dela desde que possua-se conhecimento da mesma. Penso que muitas vezes, as pessoas enxergam a alienação mas preferem continuar alienadas pois é mais fácil viver sem enxergar as raízes sombrias dos males humanos, e assim, alienadas permanecem, no senso comum permanecem, idolatrando o material como forma de felicidade exterior, como espécie de acumulo do infinito, cegas em relação ao senso crítico, cegas quando a felicidade interior, a real fé, forças e grandiosidade que vem de dentro do indivíduo, e não do material.
    …Parabéns pelo excelente texto.
    abraço.

    1. Querida Trombete,

      Obrigado pela interlocução… Suas ponderações são de fato bem contundentes. Talvez a única saída seja o caminho da reflexão crítica… Continuemos dialogando…

      Esteja bem!

  9. Adelino, gostei muito de seu texto e do tema que você abordou.
    O capitalismo está cada vez mais mudando as pessoas e corrompendo suas mentes, tornando-as caçadoras de lucro. Não se atribui, hoje, um real sentido ao dinheiro, antes usado como forma de suprir necessidades básicas de sobrevivência.

    Abraços,
    Juliana

    1. Querida Cazarotto,

      É difícil resistir e mesmo se opor a uma lógica alienante… Mas há esperança, especialmente quando fazemos uso na arte de refletir…

      Esteja bem!

    1. Prezado Rafael,

      Há sempre novas formas de idolatria, precisamos desmascará-las, a partir da reflexão e da crítica.

      Esteja bem!

    1. Querida Neriane,

      Que bom que você teve tempo para passar por meu texto… O tema da reflexão é de fato atual e delicado… Estamos tão envolvidos nele que quase não conseguimos refletir com coerência.

      Um forte abraço.

  10. Gostei muito das suas explanações professor. Seu olhar pontual para determinadas questões é sempre muito interessante!
    Parabéns!
    Abraço.

  11. Prof. Adelino,

    muito interessante a forma como discorreu o texto com suas reflexões, pessoalmente, achei muito boa a forma como escreveu do dinheiro associado com passagens biblicas e citações religiosas…

    um abraço.

  12. Querido Pitanga,

    Bom saber que você passou por aqui… O dinheiro assume uma perspectiva claramente ideológica… É preciso discernimento crítico para não sermos seduzidos…

    Esteja bem!

  13. Prof. Muito interessante o texto, porém faço, se me permite uma observação sobre a perspectiva adotada. Devemos olhar pelos olhos de quem precise do Dinheiro, ou pensadores/estudiosos que defendam o capitalismo.
    Falo isso, por ver, em meus anos universitários, que somos fruto do meio. Na Ed. Fisica, so falavam de corpo, e cultuavam o corpo, mas esqueciam de inser o mesmo na sociedade. Esse corpo tem que satisfazer algumas necessidades, conforme estudado por Maslow.
    A questão do consumo, conforme o texto aborda, é uma necessidade da sociedade. Uma cultura que trazemos desde o seculo passado. E como você mesmo disse ao seu amigo Pitanga: “É preciso discernimento crítico para não sermos seduzidos…”.
    O que quero dizer com isso, é que realmente somos “prisioneiro” desse sistema, e devemos viver e aproveitar, sem ganância, a vida que temos.

    Esteja bem…

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