Cachaça, reza a lenda, que quem toma sempre “oferece um pouco pro santo”. Genuína oração do “bebum”, pelo menos é uma prática comum a todos, independente da sua crença. Nada novo…
A origem dessa bebida – genuinamente e nacional – é cercada de mistérios, mas certamente por volta de 1532 já há relatos de destilação com propósito certo, não como o erro que deu certo. Até o então futuro primeiro imperador dessa Terra de Vera Cruz era apreciador, e só tomava a de cor azul, com aroma cítrico (por sinal, uma delícia!).
Como disse, nada novo…
As mais antigas culturas ocidentais tinham esse processo de destilação para produzir bebidas que seriam consumidas em festas sagradas ou não. Prova disso está em Baco ou Dioniso (não confundir com Dionísio que significa “dedicado a Dioniso”), mito da verdadeira confusão. Ele era designado como deus da intoxicação que chega a confundir intoxicado com deidade, dos exageros, da insanidade propriamente dita, e, como o último a ser aceito no Olimpo, pode-se dizer que ele possuía “algum complexo” por ser meio humano e meio divino, filho de Zeus com a princesa Sêmele. Apaixonado por Ariadne, aquela do fio que livrou Teseu do Minotauro no labirinto em Creta, depois de desprezada pelo herói ateniense, ele a rapta e tem com ela vários filhos, entre eles Céramo, de onde advém a palavra Cerâmico, um bairro ateniense. Em suas Bacanais, festas dedicadas a Baco, muita coisa rolava entre o sagrado e o profano, como uma fina teia que une essas realidades, uma verdadeira série da Netflix, Suburra…
Falemos de destilação, de “acqua ardentes”. Destilar é o procedimento de evaporar a essência de certa mistura e decantar em outro recipiente, que a recebe depurada por vezes repetidas. Esse processo é também usado pelos Alquimistas para purificação, com a finalidade última de se alcançar o “Elixir da Vida”, e, porque não dizer, também o “Elixir do Amor” bem ao estilo de Gaetano Donizetti. Amor e Vida, essências que levam o ser humano a experimentar os mais diversos licores que elevam a alma rumo ao sagrado, como fazem as Artes, para citar, a Poesia e a Música.
O poema de Francesco Redi (1626 – 1691) intitulado “Bacco in Toscana” é exemplo da alegria e da vida que o semi-deus tanto buscava na vivência material, valorizando o vinho como mais importante que a água. Não vamos exagerar também… Essa era uma visão barroca da busca pelo prazer carnal, bem diferente da busca pelos prazeres eternos da fé, expressos pela música desse período, principalmente em Bach na Cantata BWV 140: Wachet auf, ruft uns die Stimme; traduzindo: “Acordai, chama a Voz!”. O dueto final dessa obra é baseada em um trecho do livro do Cântico dos Cânticos, o mais sensual e profundo no sentido da alma se entregando a Deus.
Se temos ou não cachaça, oremos. O momento pede as duas coisas, o entorpecimento para aguentar o tranco dos retrocessos de Hades, Zeus, Cronos, e Hermes, e os corações ao alto para pedir não só o pão nosso de cada dia, mas, que nos livre do Mal.
Bebamos cachaça – e o santo agradece!
Antonio Pessotti é músico, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (IEL – Unicamp) e professor de Canto e História da Música na Escola de Música Maestro Ernst Mahle (EMPEM).