Gota: mitos e verdades

Gota: mitos e verdades

A gota, segundo a história da medicina, foi o primeiro reumatismo descrito. Graças a Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), temos uma descrição mais detalhada dessa artrite que afeta, em sua maioria, homens. A idade de início da primeira crise de artrite costuma ser aos 35 anos e 75% dos casos começa no dedão do pé. A primeira crise costuma ser autolimitada e dura de 5 a 10 dias mesmo sem tratamento. Naquela época, pouco se conhecia sobre os mecanismos das doenças. Acreditava-se que a causa fosse o depósito gota a gota, nas articulações, de humores (fluídos) maléficos que saíam do cérebro.

A teoria de Hipócrates para explicar as doenças era baseada na perda do equilíbrio entre os fluídos do corpo: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Acreditavam ainda que a gota era um castigo imposto aos homens boêmios que levavam uma vida muito desregrada pois dormiam durante o dia e passavam as noites regadas a muita bebida alcoólica nos bares e pelas ruas. Por outro lado, por algum período a gota foi conhecida como “a doença dos reis”. Isso porque reis, imperadores e celebridades como Darwin, Newton e Goethe eram gotosos. Atualmente, sabemos que a gota é uma doença bem democrática e acomete todas as classes sociais.

A verdadeira causa da gota também é conhecida nos dias de hoje. Assim como suas duas principais manifestações, articular e renal. O depósito de cristais de urato monossódico nas articulações é o que desencadeia a inflamação. Nos rins, formam pedras. Esses cristais se formam a partir da alta concentração de ácido úrico circulando no sangue. Em níveis normais, esta substância encontra-se dissolvida no sangue. Mas, quando em excesso, pode transformar-se num cristal em forma de agulha. Este cristal (foto), quando dentro das articulações, desencadeia a inflamação tão temida pelos gotosos.

Então, Hipócrates não estava tão errado assim. O tal humor demoníaco, nesse caso o excesso de ácido úrico, circula no sangue dos gotosos e se deposita cristal a cristal nas articulações. Talvez, pudéssemos mudar o nome da doença de gota para cristal. Brincadeiras à parte, é importante esclarecer que todos nós temos ácido úrico circulando normalmente no nosso sangue e também na urina! Somente o excesso por tempo prolongado é que pode causar problemas. Se a quantidade de ácido úrico no sangue está muito alta há chance de ter artrite, se muito alta na urina a chance maior é de pedras no rim.

 Cristais de urato monossódico em    forma de  agulha vistos ao microscópio com iluminação especial (luz  polarizada).

Na maioria dos gotosos, o aumento da concentração de ácido úrico no sangue se inicia na adolescência, mas só vai se manifestar como artrite na idade adulta. A gota tem um fator genético envolvido, então, é comum que filhos ou netos tenham pais e avós gotosos. Nesses casos, em que um familiar seja ou tenha sido sabidamente gotoso, é importante dosar o ácido úrico no sangue mesmo que não tenha havido qualquer manifestação da doença.

Muito comum é a gota fazer parte de um combo. Hipertensão, colesterol alto, diabetes e obesidade são doenças frequentemente associadas à gota. O tratamento adequado delas costuma ser acompanhado de melhora também do nível de ácido úrico.

O tratamento da gota é bastante simples e eficaz quando realizado. Grande parte dos homens gotosos são bastantes resistentes a tomar remédio quando não estão com dor. Aí que mora o perigo! Acreditam que se não tem artrite/dor estão “curados” e não precisam de remédio! Ledo engano! Após em média 6 meses, aquele que sofreu uma primeira crise de artrite, e não fez o tratamento adequado, experimenta uma nova crise. Se continuar sem tratamento, esse período entre as crises vai progressivamente diminuindo e pode culminar com artrite crônica, a inflamação não some mais. Pior ainda é que pode começar a “pegar” outras articulações. E como diz nosso presidente, “não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar”. Na gota, além de acometer várias articulações, os cristais podem começar a se depositar também em outros lugares fora das juntas, embaixo da pele, na orelha, no nariz e até no coração! São os chamados tofos.

O tipo de dieta rica em grãos foi por muitos anos considerada a grande vilã no aumento do ácido úrico. Porém, hoje sabemos que a maior parte do ácido úrico que temos no sangue vem do nosso próprio metabolismo interno e não da dieta. Entretanto, se o gotoso estiver acima do peso, diabético, com a pressão alta ou o colesterol elevado, vai precisar sim de dieta! Indiretamente, o controle dessas doenças vai melhorar o ácido úrico elevado.

As bebidas alcoólicas são um problema à parte. Não é recomendada a ingestão dessas bebidas porque elas diminuem a saída do ácido úrico pela urina. Isso causa elevação dele no sangue. Além disso, algumas como vinho do Porto, podem conter em sua composição substâncias que aumentam a quantidade de ácido úrico no nosso organismo. Então sinto muito, mas gotosos não devem beber.

Um mito que tento há anos desvendar a origem é dizer que quando a pele está descascando é por causa do ácido úrico. Essa relação não existe! O que consigo imaginar para isso é que após a crise de artrite, devido ao inchaço muito grande que ocorreu pela inflamação, a pele pode descascar quando o inchaço regride.

Mitos à parte, o mais importante é saber que o gotoso precisa de tratamento e seguimento contínuos para impedir a evolução da doença para artrite crônica, formação de tofos ou doença nos rins. E que isso é possível! Se você é um gotoso ou tem algum gotoso na família, procure um reumatologista para investigação e acompanhamento adequados.

 

 

 

 

 

 

 

Beatriz Funayama Alvarenga Freire é médica, cantora,  atleta, doutora em medicina pela Unesp, pós-doutora pela Rijkuniversiteit Groningen – na Holanda – e mestre em linguística pela Unicamp.

 

11 thoughts on “Gota: mitos e verdades

  1. Artigo super esclarecedor! Merece ser compartilhado! Tive um irmão gotoso e acompanhei por anos seu sofrimento com essa doença! Parabéns, doutora, pela riqueza das informações!

  2. Como sempre, Beatriz é didática, esclarecedora e extremamente clara! Só não gostei do que foi descrito sobre o vinho de Porto! Mas, paciência! Aguentemos a dor! Abração, Beatriz. Sou seu fã! Marques.

  3. Um texto muito gotoso de se ler! Opa, quis dizer gostoso… Hahahahah já

    Falando sério agora, mais um texto que não tem a quem não agrade: um pouco de história sobre a gota, mitos antigos e contemporâneos apontados, uma explicação simples e bem formulada sobre o que é gota e qual a maneira correta de prevení-la/combatê-la. Como sempre, aprendi bastante!!!!

    Um abraço e um beijo de seu amigo, Piva!!!!!

  4. O texto de Bia são uma aula. Hoje, além de trazer aspectos históricos, o artigo é uma bem à saúde pública em forma de prevenção. Adoro seus textos

  5. Os textos de Bia são uma aula. Hoje, além de trazer aspectos históricos, o artigo é uma bem à saúde pública em forma de prevenção. Adoro seus textos

  6. Parabéns Tatinha .
    Adorei o texto .
    Muito interessante esse aspecto histórico da gota .
    Parabéns pela explanação do tema .
    O único porém é essa restrição as bebidas alcoólicas .
    E só para o vinho do Porto ?
    Whisky e cerveja pode ???

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