Entre ovos e cellos

Entre ovos e cellos

Há alguns dias, o violoncelista Luís Felipe Salinas Almeida, um músico que viaja de cidade em cidade para ganhar a vida tocando seu instrumento nas ruas e sustentar o filho de um ano, foi alvejado por ovos em plena apresentação. Enquanto tocava em frente a uma loja de instrumentos musicais, foi alvo do morador de um prédio vizinho que lhe atirou ovos acertando covardemente o instrumento – presente de seu bisavô. O músico contou à reportagem que imediatamente foi cercado por muitas pessoas, mas a vergonha foi tanta que não via a hora de sair do lugar. Quando soube desse fato, fui tomado por uma daquelas tristezas que doem no fundo da alma pensando na humilhação pública vivida pelo rapaz, afinal, um artista – por essência – é aquele que se propõe a tocar a alma de quem o assiste, gerar sensibilidade, enlevo, e nada mais cruel perceber que ao invés disso, recebeu como resposta ao seu carinho, ao seu sentimento, raiva, indiferença e desprezo. Que pessoa é essa tão calcificada a ponto de não se deixar tocar por um artista que quase despretensiosamente procura aliviar o peso da vida, da dor e da tragédia humana? Que alma reside nesse corpo, nesse coração embrutecido e desalinhado com sentimentos como respeito?

Pensando bem, mais profundamente, é possível entender não somente a pessoa que fez a afronta, mas a sociedade em que vivemos. Não é somente aquele rapaz que tocava um violoncelo numa rua qualquer que é alvo de ovos, são professores, artesãos, artistas, acadêmicos, pesquisadores, evangélicos não terríveis e os que não aceitam com naturalidade desrespeito, ofensa, palavras chulas, palavrões, discriminação, miscigenação, preconceito, são os que não apoiam violência, não aceitam como coisa simples a tortura, a perseguição, a opressão moral, política, os que pregam a paz e não a guerra, os que rechaçam o uso de armas, os que lutam pela dignidade humana, os que acreditam no amor, os que têm fome e sede de justiça! E, da mesma forma, não é somente o morador anônimo que atira ovos em seus desafetos, é o “governo” desse país que promove, incentiva a violência, é o “congresso” omisso que aplaude a tragédia da fome, do desrespeito e da insensibilidade, é o povo cego que passa por cima da dignidade da vida para defender caprichos e ideologias macabras. É tudo o que se serve da balbúrdia política em que estamos para aproveitar-se e “lucrar” a despeito de quem sofra ou de quem morra!

A cena do músico alvejado por ovos é o retrato de um Brasil carente, cego, preconceituoso e desumano! Um Brasil que precisa de pessoas que pisam no chão, que sentem na carne a dor que não é sua, um Brasil que precisa se desarmar de ovos, de pedras, de balas, de ofensas, de ignorância para se reconstruir como uma nação de todos e para todos, onde seja possível Deus estar no meio de nós e não distante, acima, longe e desatento, como pensam alguns.

 

 

 

 

 

Prof. Dr. Rev. Nilson da Silva Júnior é pastor e professor.

revnilsonjr@gmail.com


(Foto de capa: imagem comercial de um “ganzá” – instrumento musical de percussão em formato de ovo).

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