Eu e o Lobo – por Alê Bragion

Vi mestre António Lobo Antunes a poucos passos de mim. Foi uma vez, em uma deliciosa edição da Festa Literária Internacional de Paraty – e já faz alguns anos. Dividimos, pode-se dizer, a mesma sala, o mesmo ambiente. Estávamos em pouco mais de vinte jornalistas aguardando pelo mestre que nos concederia uma coletiva de imprensa. Ou seria mais certo dizer que estava eu entre pouco mais de vinte jornalistas que aguardavam o mestre (porque, ali, eu era tão somente um intruso, um infiltrado junto à grande mídia do país que recebia com sorriso largo um dos mais importantes escritores da prosa portuguesa do século XX). Fumando um cigarro e soltando no ar a fumaça presa nos pulmões, Lobo Antunes apareceu. Dando uma última tragada na bituca incandesceste que mantinha entre os dedos, ele me olhou, ergueu a bochecha direita numa quase imperceptível piscada e, em seguida, juntou-se aos demais que o esperavam para a entrevista.

Não fui capaz de dizer palavra. Diante do Lobo que piscava para mim e ao longo de quase uma hora de coletiva não fui capaz de lhe balbuciar um único fonema, de lhe fazer uma só pergunta sequer. Não porque eu não as tivesse prontas em meu bloquinho de anotações e em minha cabeça – como conviria a qualquer (falso) jornalista como eu. Mas porque, simplesmente, para mim, diante de Lobo Antunes, nada havia para ser dito – e qualquer pergunta feita pareceria artificial, imprópria, inoportuna. Apenas liguei o gravador e o depositei sobre a mesa, próximo do mestre que começava gentilmente a responder às perguntas que os verdadeiros profissionais do jornalismo lhe faziam. (E quanta bobagem lhe perguntavam, meu Deus! Quantos absurdos lhe eram lançados descarada e impunemente – sem que ele, todavia, perdesse o bom humor, o interesse e a compostura. Pelo contrário. Lobo Antunes virava pelo avesso as descabidas colocações feitas, dava-lhes graça, desenvolvia-as, ampliava-as, tornava-as interessantes e plausíveis). 

Naquele momento, enquanto o ouvia apaixonadamente e pensava em como relatar por escrito tal conferência indescritível, tive a certeza de que jamais conseguiria fazê-lo devidamente. Ante a genialidade do mestre e a minha paixão por ele, intui cruamente que qualquer texto meu referente ao que ele dizia seria um simulacro, uma decepcionante tentativa de reproduzir o que, ante cada palavra ouvida, me parecia cada vez mais irreproduzível. Vendo e ouvindo o mestre, pensei em minha própria escrita e senti de imediato a amarga sensação da profanação do verbo, da insurgência da autoria farsante, da imbecilidade e debilidade da escrita movida pela paixão. E nada me pareceu mais tolo ou mais ingênuo do que escrever ou dizer qualquer coisa estando impregnado da plena sensação do amor.

Sim. Mesmo sem saber, fora António Lobo Antunes quem me ensinara que escrever é um crime passional – pois só se é possível escrever com fidelidade (e razoavelmente bem) quando o amor jaz abatido dentro de quem escreve – e as pulsões da atração não mais correm o risco de fazer descarrilar a escrita pelas trilhas da emoção inspirada. Diante de Lobo,  a impossibilidade da palavra – que tantas vezes me assolara durante a vida (essa mesma impossibilidade que ainda hoje me emudece quando de minhas mais variadas epifanias) presentificou-se me nua e fria. Então, guardei imediatamente no fundo de minha mochila o meu bloquinho de anotações – bem lá no fundo, a fim de que eu mesmo não o pudesse ver tão facilmente – para que, de lá, eu só o fosse tirar anos depois; quando, já arrefecida, a paixão não mais pode deformar minhas letras.

É fato que, em verdade, tive de escrever naquele mesmo dia sobre tal coletiva – afinal, eu estava lá para isso. E meu texto – falso porque inadvertidamente apaixonado – acabou publicado no dia seguinte. Mas o velho Lobo fincara definitivamente suas presas-palavras em mim – e eu sabia bem que o que eu havia escrito nada tinha a ver com o verdadeiro texto que Lobo Antunes se me evidenciara.  A impotência da palavra diante do que é fato se desenhara em meu caderno mental para sempre – e dela me lembro inevitavelmente quando chega a hora de escrever o que quer que seja. Dela me lembro também toda vez que leio, com lágrimas nos olhos, textos escandalosamente doloridos como, por exemplo, os de Primo Levi. Então, levantando os olhos do texto que se abre a minha frente, lembro-me da piscada de Lobo Antunes. E concebo enfim, em plenitude, como o mestre mesmo ensinara, que “escrever é colocar-se de pé sobre as patas de trás, a projetar sombras para frente.” 

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Alê Bragion é coordenador do Diário do Engenho

2 thoughts on “Eu e o Lobo – por Alê Bragion

  1. Estimado Alexandre,

    Seu texto contém a contundência e paixão necessárias para se aproximar de um grande autor… Fiquei imaginando, não sem inveja, você diante de Lobo Antunes, vivendo a fustração dos limites da linguagem, a incapacidade que as palavras guardam quando se contempla, se vive uma experiência que não deixa de ser também sagrada…

    Parabéns pelo texto inspirado!

    Esteja bem!

    1. Caro Adelino, obrigado pela interlocução sempre pontual e enriquecedora. O texto sobre Lobo Antunes deveria, na verdade, inscrever-se como “neutro” ou nada “apassionatto.” Mas as letras, às vezes, tomam vida própria e fogem um tanto do que pretendemos quando sentamos para ordená-las.

      Por isso, acredito cada vez mais no necessário e sempre seguro distanciamento entre texto (produção) e paixão (inspiração ou dom). Em verdade, voto no trabalho ordenado e lógico como única forma por meio da qual se pode chegar a algo de valor na arte.

      Mas está valendo! Grande abraço!

      Alê Bragion

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