E se Voltaire pudesse escrever uma carta a Sérgio Moro, o que ele diria?

E se Voltaire pudesse escrever uma carta a Sérgio Moro, o que ele diria?

 

Em 9 de março de 1762, Jean Calas foi condenado à morte injustamente por ter, supostamente, enforcado o próprio filho, por professar uma religião diferente da sua. Preservados da pena capital, os demais membros da família foram encarcerados. Com exceção do clamor público e da convicção político-religiosa dos juízes que o condenaram, não havia nenhuma prova objetiva que pudesse embasar a condenação de Calas. A resposta de Voltaire veio sob a forma de um libelo político contra a intolerância, que ficou mundialmente conhecido como Tratado sobre a tolerância. Mas, abstraídas as condições de tempo e lugar, bem como modificadas algumas circunstâncias factuais dos diferentes acontecimentos, em que medida poderíamos aplicar o discurso de Voltaire à condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sérgio Moro?

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A condenação e a posterior prisão do ex-presidente Lula, executada pelo gládio da justiça em 7 de abril de 2018, é um dos eventos mais singulares da história recente do Brasil. Pois, quando um homem inocente é entregue às mãos do erro, da paixão, do fanatismo ou de interesses escusos, então o protesto público se eleva, já que ninguém pode doravante julgar-se seguro perante um tribunal instituído para velar pela liberdade e a segurança dos cidadãos.

Neste estranho caso, tratava-se de saber se o ex-presidente recebeu propina da construtora OAS por meio da entrega de um apartamento triplex no Guarujá e reformas no imóvel, em troca de favorecimento da empresa em contratos com a estatal Petrobras. Antes mesmo do julgamento final, algum fanático no meio do povo gritou que Lula era ladrão e este grito, ecoado por toda a imprensa, num instante tornou-se unânime. Afinal, a voz do povo é a voz de Deus! É o que dizem!

Um juiz assumiu o clamor popular. Não havia e não podia haver qualquer prova contra ele, mas suas posições políticas erradas assumiam o lugar de provas. Era evidente que o acusado não poderia ter cometido o crime: o apartamento não estava no seu nome; as reformas que se alegavam terem sido feitas nunca na verdade o foram, como hoje bem se sabe; e os únicos indícios do crime eram os testemunhos de pessoas que queriam salvar a sua própria pele. Todavia a condenação foi feita. Os motivos por trás da sentença eram tão inconcebíveis como todo o resto.

Mas mesmo agora que tudo parece já tão absurdo, a conveniência da condenação se mantinha. Lula tinha seus inimigos. E muitas destas pessoas, ditas “cidadãs de bem”, mantinham a convicção de que era melhor manter na prisão um velho petista do que expor um juiz-herói ao reconhecimento público de que havia cometido um erro. Afinal, havia mais magistrados do que Lulas. Só se podia inferir daí que Lula deveria permanecer preso.

Todas as demais pessoas sensatas e desinteressadas disseram que a sentença de Curitiba seria anulada internacionalmente, mesmo que considerações de caráter pessoal impedissem que fosse cassada em um tribunal de segunda instância. Não foi o que aconteceu. Venceram o fanatismo e a intolerância. Venceu a injustiça. Porque de todos os fanatismos, o mais perigoso não é o de odiar seu próximo por causa de suas posições políticas?

Não acreditamos ter ofendido o juiz de Curitiba ao dizer que ele errou; ao contrário, nós lhe abrimos uma via para se justificar perante o Brasil e o mundo. Essa via é a de admitir que circunstâncias equívocas e a gritaria de uma multidão excitada tomaram de assalto sua justiça. Cabe sobretudo ao senhor Sérgio Moro, juiz federal responsável pelo caso Lula, principal perseguidor da inocência, demonstrar o exemplo de sua moral e de sua prudência, antes que de seu poder.

É fácil ao fanatismo arrancar a liberdade à inocência, mas é extremamente difícil à razão fazer com que a justiça lhe seja feita. Sabemos perfeitamente que se trata aqui apenas de um homem, enquanto o erro tem condenado milhares a perecer nas celas imundas dos cárceres brasileiros. Mas justamente por isso é que o esclarecimento tem que se pôr acima do fanatismo e dos interesses mesquinhos.

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Sabe-se que no caso de Jean Calas, a Câmara de Requerimentos da Casa Real, um tribunal soberano composto por desembargadores de requerimentos e destinado a julgar os processos entre os oficiais da corte, deliberou depois sobre as mesmas provas que tinham servido para condenar o réu ao suplício. Enquanto o caso era revisto, bandos de pessoas concentravam-se em frente da prisão dos demais membros da família Calas. Finalmente, no dia 9 de março de 1765 a inocência triunfou: reabilitou-se a memória do pai; a família foi solta e indenizada. Possa esse exemplo ensinar-nos algo sobre a tolerância e a justiça em um Estado democrático de direito, particularmente sobre o papel a ser cumprido por nossa mais alta corte neste momento tão grave do país.

 


 

 

 

 

 

 

Adalmir Leonidio é professor da Esalq-USP. 

 

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