Doente do Olhos

Doente do Olhos

É sempre assim. Há conversas que não conseguimos deixar de ter – mesmo quando não queremos, mesmo quando tentamos escapar pelas sombras. Puxam-nos pelo braço os porta-retratos sobre a arca da sala. Sérios, simples e silenciosos, saem sempre a nossa procura até saberem de nós, quase à força, o que nós mesmos não queremos saber ao certo. Pelos cotovelos, nos sentam em largas poltronas do tempo, acolhedoras que macias, e nos inquirem, nos intimam, nos interrogam em imagético corte horizontal não vocabular. Expostos, debulhamos nosso baú construído de lembranças e imaginações, de bem-quereres e razões que sustentam atos, erros, desejos e omissões. Solenes que circunspectos, então aguamos olhos ante as arguições dos retratos – e sucumbimos, quase sempre, em rotas demoras emocionais.

Pedem-nos a palavra também os pratos nas paredes – caminhos constantes de viagens e peregrinações temporais. Falam, os pratos, um idioma branco de louça que – por mais incrível que possa parecer – aprendemos a reconhecer vocábulo a vocábulo. Sabem, os pratos, por assim serem, do frio das salas em noites de apreensão e notícias más. Sabem, os pratos, também, do calor das alegrias, das festas regadas a conversas, a risos e a esbarrões que num sem-fim de vezes quase os derrubavam e os destruíam. Sabem, os pratos, da solidão diurna do sol na cortina da sala – quando os ciclos no carrilhão fecham-se canoros e sozinhos volta a volta. Sabem, os pratos, das mais secretas confissões, das mais misteriosas juras, das mais sigilosas combinações. Do alto de sua lacunar presença empratada, observam os pratos nas paredes o vai e vem do existir que sempre volta, ponteiro a ponteiro, para um novo e triste recomeço.

Lançam-nos perguntas à queima-roupa também os copos, os talheres, a velha geladeira que quase já não gela, o forno torto de tantos assados domingueiros, as cadeiras amolecidas pelo peso dos acontecidos que sobre elas (e sobre todos) se assentaram no desenrolar dos anos vividos. O velho guardanapo estendido sobre o fogão enxuga as histórias e as lágrimas que viu e ouviu. Assobia de tristeza e saudade a chaleira aquecida pelas manhãs outonais e de inverno morno, relembrando o tempo quando as crianças eram acordadas logo cedinho para se preparem para a escola (e a casa corria pré-aquecida por um vapor melódico, pelo ruidoso arrulhar de sacos de pão feito pombas, por tiritar de chaves de cristais, por motores de carro cheios de pressa e de horas perdidas). Abordam-nos sobre as estações de outrora idas a cozinha toda, a nos acusar também – sem maiores preocupações de consciência, direito ou justiça –, num apontar de dedos que sepulta em definitivo o que já se foi, o que já não é mais.

Pelas janelas do existir, enxequetada de grades, ouço ainda vindo no ar os latidos dos cães que se foram. A voz grossa deles correndo pelo quintal, o arrastar de vasilhas, os passos-pegadas em patas patinhadas no ladrilho sereno da área que antecede a porta da cozinha. O inspirar com força bruta entre as frestas do debaixo da casa. O choro em gemido desejando entrada. A alegria infantil a erguer do chão quilos e quilos caninos, felizes apenas por ganharem um pedaço de pão. Ouço, sim, e ainda, os graves caninos a babarem sua presença viva, dócil, angelical e sentida. Ouço também por sobre os muros os cães vizinhos, a responderem matutinas exclamações uivantes que sonoras e lamentosas. E perguntam-me todos eles, hoje, o que fiz eu do tempo que tinham – o qual nunca pude parar. Perguntam-me como pude deixar que se fossem como os meses em sequência, num sempre sem-parar sem pausa ou repetição. Perguntam-me como. E latem-me interrogativos porquês. E eu, sem latido-explicação, não respondo a nada.

É sempre assim. Há conversas que não conseguimos deixar de ter. E, dentre elas, as mais profundas e exaustivas talvez sejam as que derrubamos dos livros das estantes ou dos discos das velhas vitrolas a volatizarem luzes. Nos discos, há voltas em faixas às quais achamos que para elas nunca mais voltaremos outra vez. Mas, vez por outra, lá estamos nós. Voltados ao que amamos, a girar cantantes numa conversa infinda – às vezes triste, às vezes doce, mas sempre linda. Já as estantes, essas são sempre perigosas em seu palavrear letrado e cheio. Atiram-nos versos na cara, ferem-nos com prosas ácidas, acuam-nos com palavras fatais. Querem tudo de nós a qualquer custo – e nos dão tudo o que tem também. Contam-nos como o existir é dinâmico e diferente quando o temos nas mãos. Depois, cansados de nós, atiram-nos como pedras na realidade campestre do jardim do existir – cru e desfeito de graças.

Sim. Há conversas que não devíamos ter, nunca. Diante delas, sempre, muito cuidado. Porque – parodiando um mestre-poeta –, nesses casos, conversar é estar doente dos olhos.

(Texto publicado em A Tribuna Piracicabana – 29 de maio de 2018).

 

 


Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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