Do SNI à ABIN: paralelismos entre a atuação dos serviços de informações (1ª Parte)

Do SNI à ABIN: paralelismos entre a atuação dos serviços de informações (1ª Parte)

Espiãs. Espiões. Agentes secretos. Para aqueles que viveram o século XX, em especial o auge da Guerra Fria, entre as décadas de 60 e 80, é inevitável a lembrança do duelo entre a CIA, o órgão de inteligência norte-americana, e seu rival soviético, a KGB – uma disputa que saiu dos subterrâneos e terminou invadindo a cultura pop na forma de romances, filmes, séries de TV, músicas, quadrinhos e outras manifestações artísticas.

Se criações como 007 e o Secret Agent Man – cantado por Johnny Rivers – e mesmo paródias como Mortadelo & Salaminho e o Agente 86 esbanjavam fantasia, cenários luxuosos e sofisticação tecnológica, a luta que acontecia no mundo real era menos glamourosa – com resultados que impactariam o destino de muitos países e de milhões de pessoas, especialmente nas dezenas de golpes de estado apoiados por serviços de inteligência.

Citada na Bíblia e empregada desde a antiguidade por nações na defesa de seus interesses políticos, militares e mesmo mercantis, a espionagem sempre se valeu de práticas discretas como o acesso a documentos sigilosos ou gravações clandestinas – mas sem dispensar torturas e assassinatos, cooptação, chantagens e mesmo campanhas de sabotagem a setores produtivos, de manipulação eleitoral e de desinformação, dentre outros meios.

Assim, se alvos prioritários costumavam ser países vizinhos ou potências rivais, durante a Guerra Fria a espionagem foi largamente direcionada para combater as denominadas “ameaças internas”, constituídas por grupos políticos ou sociais ou mesmo indivíduos que contrariassem os interesses ou representassem riscos ao governo ou esferas de poder.

No Brasil, o levantamento de informações de inimigos internos já era uma prática conhecida, mas esse padrão teria um avanço exponencial a partir de junho de 1964, com a criação do SNI (Serviço Nacional de Informações), idealizado e estruturado por alguém que, além de experiência direta no setor e em conspirações em governos anteriores, foi um grande articulador do golpe de 31 de março do mesmo ano e um dos maiores ideólogos do regime: o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), também primeiro comandante de um órgão que adquiriria status de ministério e cuja importância pode ser medida pelo fato de dois de seus futuros chefes, Medici e Figueiredo, virem a alcançar a presidência da república.

Isto posto, se em um mundo democrático e ideal o SNI deveria possuir atribuições claras, controles eficientes e subordinação exclusiva aos interesses do país, na realidade imposta pelo regime – orientada pela onipresente Doutrina da Segurança Nacional – o órgão, valendo-se de agentes e informantes, agiria – tanto de forma oficial como nas sombras – de toda a estrutura federal, além de repartições públicas estaduais e municipais, autarquias e mesmo em universidades, movimentos sociais, igrejas, empresas, sindicatos e até na imprensa – sempre com o objetivo de coletar informações, identificar potenciais inimigos e agir contra estes.

Nesse esforço, como destaca o jornalista Lucas Figueiredo em Ministério do Silêncio – obra de referência sobre a história dos órgãos de inteligência brasileira –, o SNI, além de receber vultuosas dotações orçamentárias e empregar milhares de pessoas (muitas sem qualquer qualificação e com apadrinhamento e nepotismo escancarados), chegou a ter um centro de formação, hospital exclusivo e apartamentos funcionais à disposição em Brasília. Essa estrutura material e humana, voltada para obter informações sobre questões de interesse governamental – mas especialmente sobre alvos que poderiam ser desde aliados próximos a opositores – produziria vasto material na forma de relatórios, dossiês, boletins, informes e outros documentos.

O início da abertura “lenta, gradual e segura” iniciada pelo governo Geisel (1974-1979) coincidiu com o que o jornalista Lucas Figueiredo aponta como início da decadência do órgão. A corrosão da credibilidade do SNI passaria por, dentre outros, episódios de detectação de ameaças inexistentes, desperdício de recursos públicos e pelo acobertamento de casos de corrupção governamental (além de evitar críticas ao regime, a prática alimentava dossiês que poderiam ser utilizados no futuro para chantagens ou para barrar o acesso de desafetos a cargos, por exemplo).

O nonsense também teria vez no SNI, a exemplo da ocasião em que, também resgatada por Lucas Figueiredo, agentes se dedicaram a vigiar um bloco de carnaval em Brasília que, através de marchinhas, satirizava o governo federal no final dos anos 70. Seria difícil imaginar, mesmo na ficção, um enredo em que o serviço secreto britânico, por exemplo, acionasse James Bond para “enquadrar” bandas punk que, no mesmo período, bradavam em suas canções críticas agressivas e ofensas contra Sua Majestade. No Brasil da época, entretanto, isso chegou bem perto de acontecer.

A decadência do SNI pode ter sido lenta e gradual, mas a persistência de seu modus operandi durante as décadas seguintes, verificada especialmente na presença de antigos agentes em escândalos de espionagem ilegal, representaria – e ainda traz –muita insegurança para as instituições democráticas, conforme será examinado na segunda parte deste artigo.


Orlando Guimaro Junior é advogado com especialização em Direito Contratual (PUC/SP)e MBA em Agronegócios (PECEGE/ESALQ-USP) e membro da Comissão Especial de Estudos de Compliance da OAB/SP. É coautor do livro “Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior”.

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