Dia de Parada

Dia de Parada

Não era uma manhã de desfile, mas era com se fosse. O pai acordou cedo – ansioso que só. Tirou logo os filhos da cama tal qual sempre fazia aos sete de setembro: bandeirinhas prontas para balançarem nas mãos, tiras de papel verde e amarelo colados em palitos de churrasco e um catavento nacionalista esperando o momento de girar. “Grande dia!” As crianças tomavam o café da manhã boquiabertas, ouvindo do pai a versão dele de uma expectativa que remontava a glórias inexistentes, a movimentos bélicos estrangeiros tomados de empréstimo para alimentar uma memória feita de fragmentos bricolados – mistura de sonhos, alucinações, desejos reprimidos, arquétipos vestindo a fardas e coturnos explodindo a recalques de microfalia.

“Grande dia!” – se excitava o pai sobre a marcha programada para em breve, do nada, se espraiar pela esplanada. “Grande dia!” – e os filhos engoliam o desjejum com a narrativa onírica e matinal amanteigando anseios de um porvir milimetricamente querido: um sem-fim de homens perfilados nas avenidas passando em continência, aviões em rasante rindo fumaças verde-amarelas, modernos canhões soltando solenes salvas em homenagem a ninguém. Os meninos acreditavam em tudo, espantados.  “Grande dia!” – continuava o pai, antegozando a cena prometida: e os carros? E os blindados? Olhos arregalados, os meninos bebiam um suco de laranja espremido com a promessa paterna feita de tanques arrojados arrojando medos, de reluzentes comboios silenciando ares e corações à luz das ilusões pátrias.

“Não é hora de irmos para a avenida, pai?” – perguntou um dos garotos, ansioso. O pai fez que não ouviu. Puxando a ponta da cortina e espiando discretamente o movimento pela janela da cozinha, seguiu desfilando realidades como palavras em marcha. “E quando passar a infantaria? Já pensaram? O mundo nos vendo pela televisão e se impressionando. Imaginem! Fechem os olhos e vejam!” Os meninos fechavam os olhos em devaneios. Eram bons garotos – como o pai sempre dizia, mesmo diante das artes que aprontavam publicamente. “Não é melhor já ir para a rua?” O pai nem ligava – e seguia sua narrativa esculpida num palavrório cheio do nacionalismo que ele entendia que mereciam. “Bons garotos”, dizia o pai entre a descrição que fazia de uma super metralhadora e outra.

“Estou ouvindo um barulho estranho vindo de fora, pai. Será que o desfile não está passando?” – disse o menino mais velho, já mais acostumado à realidade da vida (que ele, na rua, tentava ganhar com o comércio informal de chocolates). “E a fanfarra? Imaginem agora a incrível fanfarra ribombando ‘in potência’ a música de nossas almas” – o pai seguia. Embevecidos, os meninos então ouviam sem ouvir – pés acompanhando no ladrilho da cozinha o ritmo hipotético e marcial das caixas, de bumbos lunares e cornetas infernais que o pai imitava. “Que som estranho é esse lá fora, pai?” – disse de repente o menino mais novo. “Acho que tem um caminhão tentando dar partida aí na frente de casa” – comentou o outro. “E essa fumaça? Parece óleo queimando…” – completou o menino do meio, em voz baixa para não ser ouvido nem pelos seus próprios pensamentos. Com mais força, o pai anunciava agora um hino – fazendo o som das trombetas com a mão direita fechada junto aos lábios.

“Quando vocês crescerem” – disse o pai, por fim – “vocês vão sempre se lembrar deste grande dia” – continuou – “desta manhã de glória para nós. Por favor, meninos, jamais se esqueçam de tudo isso”. Os meninos sorriam, olhinhos voltados para o nada ante a narrativa moldada em forja quente pelo pai – que, de tempos em tempos, retornava discretamente à janela e espiava com fé e tristeza se alguma alteração se dava nos campos sem exaltação do de lado de fora do mundo. Mas o que é o mundo senão aquilo que contamos para nós mesmos? “Grande dia, pai. Grande dia” – e já não era mais preciso sair de casa para nada. Já não era mais preciso ver ou ouvir coisa alguma. O pai e sua verdade eram tudo o que tinham e precisavam. O pai. “Grande dia, garotos! Grande dia!”

Mais forte, a fumaça cinza enfunava com força os vidros da casa.

 

 

 

 

 

Alê Bragion é editor do D.E.

 

Crônica publicada também em “A Tribuna Piracicabana” – 12/08/21.


 

 

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