Em 31 de março de 2024 completaram-se 60 anos do golpe cívico-militar no Brasil. Desses 60 anos, 21 anos dos meus 64 anos aconteceram no contexto do regime militar. O nascimento de uma consciência do sentido desse período e das primeiras garatujas de compreensão dele se iniciou a partir dos meus 15 anos – em um contexto de formação seminarística junto aos Missionários Redentoristas.
O tempo da vida e vivência universitárias deu-se entre 1980 e 1983, na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. O Curso de Filosofia acontecia no Campus Central, centro da cidade de Campinas. O Pátio dos Leões, área interna à universidade, foi o cenário e a ágora de inúmeras manifestações: campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita, o movimento pela legalização das esquerdas que estavam na ilegalidade, os acenos para um pluripartidarismo para além da ARENA e MDB, caminhando para as Diretas-Já. As tendências políticas universitárias, como por exemplo, a LIBELU – Liberdade e Luta, de orientação trotskista, lideravam as grandes manifestações.
A UNE – União Nacional dos Estudantes – a ANDES – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, a ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – articulavam-se em nível nacional contra o regime militar e iam construindo formas de resistências, todas entidades ligadas ao campo da educação. Deve-se, portanto, reconhecer que UNE, ANDES e ANPED transformaram a compreensão da educação no Brasil, apontando para uma educação laica, pública, gratuita e para todos. Transformaram também a feição da universidade, essa invenção recentíssima no Brasil.
No Curso de Filosofia, as perspectivas marxianas, fenomenológicas e tomasianas me informavam, me formavam e me encantavam. Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty apontavam possibilidades de diálogos entre Marx e Husserl. Mas, também, as primeiras aproximações à Filosofia da Libertação e à Teologia da Libertação estavam dadas, pois a III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano – CELAM – apresentava o Documento de Puebla, cuja abertura fora feita pelo Papa João Paulo II. Puebla (1979), antecedida por Medellín (1968), foi uma abertura irreversível da Igreja ao Cristianismo Latino-Americano-Caribenho. O pobre ganhou centralidade tanto na reflexão filosófica quanto na reflexão teológica, voltando às fontes proféticas e evangélicas da opção do Deus que se fez carne, matéria e história na figura de Jesus Cristo – que nasceu pobre e veio para os oprimidos e empobrecidos.
Enquanto estudava filosofia em Campinas, habitado e informado por todo esse cenário, também participava de movimentos de âmbito eclesiástico, político e educacional. Três campos de inserção que se interseccionavam me acolheram: a igreja, o partido, a escola. Três forças que se somavam às lutas necessárias à crítica ao regime militar e, ao mesmo tempo, buscavam a sua superação mediante experiências e vivências mais democráticas e participativas. Assim, ao mesmo tempo que estava na PUCCAMP, também me avizinhava da UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba – , onde logo iniciei meus estudos de mestrado e doutorado e onde me tornei docente por 28 anos. Nessa universidade foram realizados eventos importantes da UNE e da ANDES em pleno regime militar. Também eventos cujos diálogos reataram as relações com a Cuba de Fidel, Che e Cienfuegos, e a Causa Palestina de Arafat. Também foram realizadas as Jornadas sobre Filosofia da Libertação em 1982, organizadas por Hugo Assmann, que havia acabado de chegar ao Brasil, no contexto da Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, – buscando refletir a partir das maiorias oprimidas. Assmann sofreu um duplo exílio, no contexto do regime militar no Brasil e, depois, no Chile, indo para a Costa Rica e Nicarágua na América Central. Aí, em Costa Rica, juntamente com outros, como Franz Hinkelammert, fundou o DEI – Departamento Ecumênico de Investigação.
Nesse cenário foi implementado, desde o CFT – Centro de Filosofia e Teologia da UNIMEP –, o Curso de Filosofia em perspectiva latino-americana-caribenha em 1988, o qual perdurou por mais de 20 anos. Primeiro projeto de Filosofia Latino Americana do Brasil criado por uma geração anterior – Hugo Assmann, Bruno Pucci, Ely Eser, Elias Boaventura e outros, na UNIMEP, onde Enrique Dussel esteve pela primeira vez. Em sua segunda vinda, tive a oportunidade de apresentá-lo à comunidade universitária unimepiana.
Vale um aceno fundamental no tocante à Filosofia e ao seu ensino. Ela, como a Sociologia e a Psicologia, estava fora das salas de aula no regime militar. Desde a Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mas também em toda a região sudeste, houve movimentos para retorno destas respectivas áreas de saberes às escolas. Em São Paulo, no Governo de André Franco Montoro – político, humanista e filósofo, cujo Secretário da Educação era Paulo de Tarso –, a Filosofia, a Sociologia e a Psicologia retornaram ao ensino médio. Assim, todo o quarto ano do curso de Filosofia na PUCCAMP foi pensado na perspectiva do retorno da Filosofia ao ensino médio, já em 1984, nos currículos escolares juntamente com a Sociologia e a Psicologia.
Nota dos editores: a UNE foi considerada ilegal pelo governo militar ainda em 1964. Sua sede, no Rio de Janeiro, foi atacada e incendiada no dia 1 de abril. Um decreto dos militares, de imediato, colocou todas as entidades estudantis na ilegalidade. Em 27 de outubro, um decreto específico extingui a UNE. A ANDES surgiu em 19 de fevereiro de 1981, na cidade de Campinas, inicialmente como Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior. Em 1985, chegou inclusive a realizar seu congresso nacional em Piracicaba, na UNIMEP. Já a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa foi fundada em 1978, no Rio de Janeiro, como entidade sem fins lucrativos para congregar professores e estudantes, assim como pesquisadores vinculados a programas de pós-graduação stricto sensu em educação.
Prof. Dr. Edivaldo José Bortoleto é professor adjunto do Departamento de Educação, Política e Sociedade do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
(Foto: Incêndio do prédio da UNE. 1964. Acervo do Memorial da Democracia.)