Entre vários ensaios do livro “Entre o Passado e o Futuro”, de Hannah Arendt, há dois que no momento me tocam: um trata da crise na educação e o outro da crise na cultura. Embora Arendt empregue a palavra “crise” com outro sentido, é no atual que penso, que é a dupla crise em nossa cidade que tem me preocupado. E o que me motiva a citar Arendt, embora os sentidos não coincidam, é por estarem em um livro com esse título, “Entre o Passado e o Futuro”.
O que nele me atrai – o tanto que é dito, ao não ser explicitado. O que há entre o passado e o futuro? Há quem pense no trabalho, na mediação entre professor e aluno. Mas creio que seja igualmente razoável pensar nas histórias da cidade contadas para os pequenos, o “no tempo dos meus, dos seus avós” ou “no nosso tempo de criança”, os hábitos, os lugares lembrados– apontando para a importância da memória material e imaterial do lugar, o presente de cada um, como um elo entre o passado e o futuro.
E essas possibilidades, esses exemplos, não estariam também dentro da educação, da cultura entendida como cuidado, assim como puericultura é o cuidado médico com crianças pequenas, desde seu nascimento? Mas quando “olhamos” para o passado de Piracicaba, enxergamos esse cuidado? O livro de Francisco Ferreira, “A Passagem da Cidade – Uma Piracicaba que poderia ter sido” é eloquente ao mostrar que não, que destruição de edificações, erros no passado fizeram com que o futuro– que é o presente em que escrevo– não seja o que poderia ter sido.
Exemplos? Fiquemos na “Praça da Catedral”: o “Theatro” virou um coreto ridículo, o Hotel uma torre/monumento ao mau gosto, e, porque não–à blasfêmia. Esse querer fazer no presente o esquecimento do que não pode ser esquecido, a destruição do melhor que o passado nos deixou, preocupa. O título do livro de Arendt, os capítulos sobre crises, sintetizam essa preocupação: o que será do futuro de Piracicaba, se, no presente, nos dedicamos ao apagamento do seu passado?
Uma incompleta memória dos últimos anos: Unimep Taquaral – fechada. Escola de Música – patrimônio material desprotegido. Observatório Astronômico – desativado. “Pinacoteca na Moraes” – fechada. “Boyes”, semente plantada por “Luiz de Queiroz”, ameaçada por torres, de novo elas, de novo o mau gosto, e, porque não, de novo – blasfêmias para o cemitério indígena. Representantes da “sociedade civil” (da área de artes visuais e audiovisuais, de artes cênicas, de música, de livro e literatura, de tradição e culturas populares, de instituições da sociedade civil), excluídos do Conselho Municipal de Política Cultural!
Incompleta também porque contada assim, na secura de uma lista, não conta da resistência dentro e fora da Câmara Municipal. Não conta do abraço à Pinacoteca, do projeto para o tombamento do patrimônio imaterial e material da Escola de Música, do projeto para transformar a Unimep em instituição federal, do “Movimento Salve a Boyes”, e por aí segue. Não saberia dizer quantas crises mais há na educação e cultura e não sei como serão tratadas a partir das reconfigurações trazidas pela Reforma Administrativa.
Não sei, mas espero que no presente que lhes foi dado para administrar a cidade, cuidem para que o patrimônio histórico, cultural e educacional construído no passado, seja respeitado. Empenhem-se, para que voltem a ser usufruídos por todos que assim desejarem – reforcem, não cortem os elos entre o passado e o futuro de nossa cidade.
Sergio Oliveira Moraes, físico, docente aposentado da ESALQ/USP