Por enquanto, resta muito pouco a dizer sobre o Oscar de melhor filme internacional a “Ainda Estou Aqui”. O momento agora é de epifania, de celebração, de emoção sem tanta racionalidade – ou quase. Afinal, para além de estarmos saboreando o primeiro Oscar para um filme brasileiro na história do cinema, estamos presenciando a premiação (das maiores do mundo) de uma obra que registra um dos momentos mais terríveis de nosso país. Ou seja, levamos o Oscar e ao mesmo tempo – para desgosto da escumalha extremista aduladora de militares e lambedora das solas dos sapatos dos criminosos que sustentaram e ainda querem sustentar regimes ditatoriais no Brasil e fora dele – vimos a história (num resgate cirúrgico e absolutamente sóbrio) ser colocada no seu devido lugar.
Poderia ser melhor? Sim. E é. No plano das coincidências ou não, no exato momento em que em Hollywood se anunciava o Oscar para “Ainda Estou Aqui”, na Marquês de Sapucaí – no Rio de Janeiro (cenário em que viveu por anos a família Paiva) – a Imperatriz Leopoldinense adentrava a avenida louvando a Oxalá com o enredo Ómi Tútu ao Olúfon – Água fresca para o senhor de Ifón”, que narra a jornada de Oxalá para visitar Xangô, o orixá (nada menos) da justiça.
No enredo da Imperatriz, a exposição dos desafios enfrentados por Oxalá ao longo do caminho – incluindo a desobediência a um presságio e as provações impostas por Exu, o mensageiro dos deuses – que resultam em um período de sofrimento e solidão. Ao final, o enredo se encerra com o fim da viagem de Oxalá e exalta-se a redenção e a justiça de Xangô – reforçando valores como a fé, o acreditar, a resistência, a resiliência e a renovação espiritual. Por vias indiretas, valores esses presentes na medula de “Ainda Estou Aqui”.
Na esteira de filmes também fundamentais para se compreender e se pensar os anos de chumbo no país – como “Pra Frente Brasil”, “Que bom te Ver Viva”, “O Que é Isso Companheiro”, “Batismo de Sangue” e “Marighela” , só para citar alguns -, “Ainda Estou Aqui” é ponto culminante de uma saga – como a de Oxalá – numa trilha que leva (também) à justiça histórica. Afinal – e se a justiça dos homens ainda é lerda no que diz respeito aos crimes cometidos contra todos e todas que, de alguma forma, perderam ou mesmo comprometeram suas vidas (seus corpos, sua existência e a de seus familiares) na luta por liberdade e contra o regime – a trajetória de “Ainda Estou Aqui”, suas premiações e repercussão, é uma imensa vitória da verdade histórica e da realidade de um tempo que não pode ser esquecido para que NUNCA MAIS SE REPITA.
Como Oxalá junto a Xangô ao final de sua viagem em busca do artífice da justiça descansa bebendo e banhando-se na água fresca reservada aos que conseguem a duras penas sobreviver às cruezas da jornada, é hora de “Ainda Estou Aqui” celebrar sua chegada aos cimos da vitória deleitando-se também nas águas de Xangô (e que baita banho está sendo esse!) – rememorando e reverenciando nesse momento a história de tantos e tantas que ficaram pelo caminho, acolhidos que foram nos braços sempre ternos de Oxalá.
Diário do Engenho.