Confronto de fundamentalismos

Confronto de fundamentalismos

Uma vez mais, explodiu o conflito entre Israel e Palestina – que parece não ter fim e de tempos em tempos vive escaladas de violência e carnificina, caracterizando o Oriente Médio como um lugar minado até a eternidade, palco de divergências e ódios infinitos.

Renovam-se, portanto, a atualidade e o interesse em torno do livro Confronto de fundamentalismos, de Tariq Ali, publicado no Brasil em 2002 (logo após o trágico 11 de setembro envolvendo as torres gêmeas americanas) e que traz por subtítulo “Cruzadas, jihads e modernidade”. Isso porque esta obra ajuda a compreender (e nunca aceitar) o que está acontecendo, desde 7 de outubro de 2023, no Oriente Médio, entre Israel e o povo palestino (Guerra Israel-Hamas).

Tariq Ali, um paquistanês que conhece em profundidade a história e os confrontos intermináveis da região, adota uma postura crítica e progressista para narrar e analisar os eventos políticos, estratégicos e militares marcantes ali ocorridos até a explosão da onda terrorista que culmina com o primeiro e espetacular ataque ao território americano, em 2001, e dá início à guerra das potências ocidentais, sob liderança americana, contra os grupos islâmicos fundamentalistas armados.

O fundamentalismo a que o texto se refere não é apenas o inspirado pelo Alcorão (que aliás se divide em vários fundamentalismos particulares, conforme diferentes interpretações das palavras do profeta) – também a cartilha do novo superimperialismo do século XXI, pós-fim da Guerra Fria, gera um fundamentalismo tão potente e raivoso quanto o religioso.

Segundo Ali, nada do que aconteceu ao longo do século XX em todo o Oriente Médio, na Índia, no Paquistão, em Bangladesh e na Caxemira deixou de contar com a intervenção das potências europeias e do império americano. Governos e grupos armados muçulmanos sempre foram apoiados pelo Ocidente para garantir ascensão ou derrubada de governos, a fim de garantir os interesses de potências externas em torno do tráfego marítimo comercial na região (dependente de circulação livre pelos estreitos que a caracterizam) e em torno dos abundantes poços de petróleo.

Israel, segundo o autor, é um enclave artificialmente criado na região, à revelia dos interesses árabes, que ao mesmo tempo é uma garantia da presença ocidental soberbamente armada na área conflagrada e um polo gerador de atritos intermináveis, que acaba por reduzir a confiança na continuidade do equilíbrio de forças favorável aos judeus, americanos e europeus. Por outro lado, as alianças e acordos principalmente dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha com governos-fantoches nos diversos países da área reforçam a segurança militar israelo-ocidental, porém não sem gerar um ódio crescente das populações com isso prejudicadas, não raro levadas à fome e sempre mantidas sob regimes de força.

A tese central de Tariq Ali é a de que o fundamentalismo religioso típico da região não passa de fachada e de instrumento de alienação das massas ignorantes para sustentar politicamente as decisões e ações de grupos, armados ou não, que disputam o poder entre si, contando ora com o apoio, ora com a oposição das potências ocidentais e, antes da sua derrocada, da antiga União Soviética.

Tariq Ali consegue, em Confronto de fundamentalismos, traçar um panorama deste aspecto marcante do século XXI, herdado do século passado, numa abordagem ao mesmo tempo histórica, analítica e biográfica (na medida em que ele próprio e sua família tiveram e têm envolvimentos diretos em acontecimentos relevantes da realidade tratada na obra). E argumenta, com base em dados e informações abundantes, que o confronto em questão não é entre civilizações (Oriente e Ocidente) ou monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo), mas sim entre imperialismos economicamente alicerçados (e portanto modernos e mercantis-capitalistas) e regionalismos baseados em crenças teológicas que facilitam relações sociais e políticas que atravancam o processo de emancipação econômica a favor das populações locais, terminando por concentrar riqueza e poder nas mãos de poucos, sob o guarda-chuva militar que estes poucos obtém por meio de alianças com potências ocidentais que são, ao fim e ao cabo, as mais beneficiadas pela exploração das riquezas locais e pelo domínio das rotas de comércio da região, fundamentais à economia global.

Afirma o autor (p. 432-433), procurando sintetizar o que acontece e tentando vislumbrar uma saída: “A ascensão da religião é explicada parcialmente pela falta de qualquer outra alternativa ao regime universal do neoliberalismo. (…) Eis o desafio [para os árabe e muçulmanos]: Nós temos uma necessidade desesperada de uma Reforma islâmica que possa varrer para longe o conservadorismo enlouquecido e o atraso dos fundamentalistas, mas, ainda mais, que abra o mundo do islã a novas ideias que sejam vistas como mais avançadas do que o que está sendo oferecido atualmente pelo Ocidente.” Desafio claramente à parte dos interesses “ocidentais” (leia-se de grandes empresas globais) na região, que, de fato, propõem sempre mais do mesmo: mais “mercado livre”, que enriquece países desenvolvidos e empobrece países subdesenvolvidos (enquanto enriquece suas elites servis) e, ao mesmo tempo, menos democracia (enquanto, no discurso, esta aparece como motivo para numerosas e incessantes intervenções militares).

 


Valdemir Pires é economista e escritor. 

 

(Referência: ALI, Tariq. Confronto de fundamentalismos. São Paulo: Record, 2002, 479 p.)

Foto de capa: Zeynep Silan. 

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