O que o atual presidente dos EUA, Joe Biden, tem a ver com a ditadura militar no Brasil? Quem ainda se lembra de encontro ocorrido em 2014 entre ele, então vice-presidente do EUA, e a presidente Dilma Rousseff, que instituíra a Comissão Nacional da Verdade? Bolsonaro talvez ainda seja dos poucos que se lembre.“O erro da ditadura foi torturar e não matar”, diria Bolsonaro em 2016, embora nos anos seguintes viesse a defender torturadores.
Especialmente as torturas eram, no entanto, o conteúdo da documentação entregue por Biden à presidente Dilma, em cerimônia pública. Tratava-se de documentos considerados pelo governo americano secretos até então, mas copiados em um HD e entregues em mãos a Dilma. Segundo declarações de Biden, “um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional de Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos”. Encontro cheio de simbolismos do governo Obama ao entregar o material a alguém que também passara pela tortura dos militares e se encontrava na presidência do Brasil.
“O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até confessar… Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água.” (documento trazido por Biden, enviado pelo consulado norte-americano em 1973).Já um telegrama do cônsul norte-americano em SP, em 1972, assim informava:
“vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado”.
Narrativas parciais, também problema das esquerdas
Se o governo Bolsonaro foi pródigo ao divulgar novas versões sobre o golpe de 64, a esquerda parece cometer equívoco semelhante ao ir deixando – como se não essenciais – momentos como os relatados acima, que levaram a documentação extensa e detalhada sobre as práticas dos militares durante a ditadura.
Gravações de ministros em sessões do Superior Tribunal Militar que vieram a público em 2022 mostram como também eles sabiam o que ocorria. As gravações integrais foram liberadas pela ministra do STF, Carmen Lúcia, em 2011, e desde então vem sendo transcritas e analisadas pelo historiador Carlos Fico.
Destaquem-se, entre tantos conteúdos, as palavras do ministro Rodrigo Octávio:“… alguns réus trazem aos autos acusações referentes à tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-Doi (…). José Roberto Monteiro(…) no sentido de deixar claro perante esse conselho que aqui negou muitas das suas afirmativas feitas durante a fase iniciaria porque naquela ocasião fora torturado, o mesmo ocorrendo com a sua mulher, a qual inclusive sofreu um aborto no próprio Codi-Doi em virtude de choques elétricos em seu aparelho genital, fato ocorrido no dia 8 de abril de 1974…” Ou a do almirante Julio de Sá Bierrenbach, em 1976: “Rendo minhas homenagens a todos os que participaram da Operação Bandeirantes em São Paulo ao fim da década de 60. Naquela oportunidade, tombaram em ação membros das Forças Armadas, da Polícia Civil e da Polícia Militar, mas a guerrilha urbana foi extinta (…). Morreram também subversivos, defendendo seus pontos de vista, mas também tombaram em ação. O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado (…). Já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes…”.
Não é mais possível se negar as torturas que aconteceram durante o período militar. Como não é mais possível ignorar a impunidade daqueles que as causaram. Não teria sido justamente esse fato um dos fatores da violência que caracteriza até hoje, e de forma crescente, a atuação das polícias e dos agentes públicos no país?
Aos que queiram conhecer em detalhes as gravações e considerações dos ministros, os áudios podem ser ouvidos na íntegra em https://www.poder360.com.br/brasil/leia-a-integra-dos-audios-sobre-tortura-na-ditadura-militar/
Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.