Quem os conheceu? Quem se lembra deles?

Quem os conheceu? Quem se lembra deles?

Piracicaba foi uma cidade onde a história aconteceu. Onde testemunhas e figuras essenciais na luta contra o regime militar viveram. Onde foram acolhidas, mas poucos souberam, à época, quem eram, o que haviam vivido, o quanto, anos depois, se poderia falar de conquistas democráticas nos quais estiveram diretamente envolvidas. Trata-se, de certa forma, de um processo comum às cidades do interior. Acontece, mas ninguém sabe. Nessa perspectiva, se mantém o relato de que pouco aconteceu nas cidades do interior. Os registros são raros. Não é “privilégio” de Piracicaba.

Em Ribeirão Preto, para onde se transferira para montar o departamento de genética da Faculdade de Medicina da USP, o cientista Warwick Kerr foi preso em 1969, ainda na área do campus, após – ao final de uma aula – denunciar o que acontecia com a madre Maurina Borges, presa naquela cidade sob acusação de subversão. Kerr foi liberado horas depois, com a advertência de que se continuasse a criticar o governo “seus filhos sofreriam as consequências”. A cidade presenciou, por conta da prisão e torturas à freira, o único caso de excomunhão feito pela Igreja Católica a dois delegados por conta do que ali ocorrera. Não é fácil encontrar tais relatos.

Em São Carlos, em 1968, temendo uma passeata de trabalhadores que protestavam contra o não recebimento de salários de um frigorífico que veio a falir, e que contava com apoio inconteste dos alunos do campus da USP, a força pública do Estado tomou a cidade, inclusive mantendo tanques estacionados na praça central por determinação do Exército. O controle foi tal que as rodovias de acesso à cidade foram controladas e todas as pessoas que saíam ou entravam do município eram obrigadas a se identificar. Mais difícil ainda se encontrar registro documentado sobre o fato, embora o responsável pelas forças da repressão tenha sido recebido com honras pelo prefeito quando de sua chegada.

Em 1980 e 1982, Piracicaba sediou dois congressos da União Nacional dos Estudantes – UNE. O primeiro, com a entidade ainda considerada ilegal, levou a processos de segurança nos alojamentos, que envolveram professores e funcionários da UNIMEP, assim como grande parte da estrutura do governo municipal para proteção de estudantes. Ainda assim, a casa do bispo metodista que vivia na cidade, Osvaldo Dias da Silva, foi invadida e ele e a família mantidos sob a ameaça de pessoas armadas durante algum tempo. Os invasores nunca foram identificados, embora muito se falasse que eram membros do Comando de Caça aos Comunistas.

Quem soube de tudo isso? Quem ainda se lembra de figuras referenciais que viveram em Piracicaba justamente no período pós-ditadura? Quem foram Hugo Assmann, Dermi Azevedo, Enildo Pessoa, Antonio Gadelha, Paulo Markun? – só para citar alguns. Figuras emblemáticas em suas áreas, fundamentais no registro do processo democrático do país, que viveram em Piracicaba praticamente incógnitos.

Hugo Assmann (1933-2008) se tornou professor da UNIMEP em 1981, depois de 12 anos no exílio. Referência brasileira na elaboração da Teologia da Libertação, em Piracicaba continuou a escrever e publicou diversos livros, já então voltados também à questão da corporeidade e novos paradigmas educacionais, de circulação em vários países.

Dermi Azevedo (1949-2021), jornalista, foi um dos torturados durante o governo militar – situação agravada porque isso se estendeu a sua esposa e a um de seus filhos – então com um ano e oito meses – que se suicidaria já adulto sem nunca ter superado o que a família enfrentara. Dermi se tornou uma das vozes mais referenciais nos movimentos de direitos humanos no país, participando também de órgãos internacionais. Em Piracicaba, foi professor da UNIMEP e editor de “O Diário.”

Enildo Pessoa foi assessor do governador Miguel Arraes, apontado como possível sucessor de Francisco Julião nas Ligas Camponesas e fugiu do Nordeste para não ser preso. Veio a Piracicaba a convite do governo João Herrmann, com quem trabalhou como assessor, influenciando diretamente na reflexão de vários programas implementados naquela administração municipal.

Antonio Gadelha (1935-2012), bancário, também se radicou em Piracicaba, depois de anistiado, retomando seu cargo no Banco do Brasil, do qual fora exonerado logo após o golpe militar. Preso e torturado seguidas vezes por suas atividades sindicais e em prol da anistia, participou do governo João Herrmann, como assessor jurídico-administrativo.

Paulo Markun, jornalista, durante alguns meses dirigiu o “Jornal do Povo”, um semanário de distribuição gratuita que circulou na cidade ao final dos anos 1970. Markun também estava preso no DOI-CODI quando da morte da Vladimir Herzog, tendo sido liberado apenas para o enterro e voltando à prisão, onde permaneceu sob tortura.

Ignorar o que aconteceu na cidade de Piracicaba no final da década de 70 até a metade dos anos 1980 é ignorar parte da história brasileira das lutas democráticas: um congresso nacional pela anistia, dois congressos da UNE, encontro da Juventude Palestina, encontros de prefeito da oposição, organização da Associação dos Favelados, entre tantos outros movimentos.

Isso tudo, porém, não se conta. Ou se conta pouco. É tempo de recuperar essa história. De conhecer o quanto a cidade já foi importante para o país. De admitir que no interior as lutas aconteceram, consolidaram conquistas, abriram-se como espaço de recomeços. Ante o esquecimento, é preciso se recontar a história de Piracicaba, é preciso se revisitar a trajetória de vida e de luta daqueles e daquelas que doaram suas vidas para que a democracia fosse, hoje, uma realidade.

Detalhes sobre estes e outros personagens da história de Piracicaba podem ser conhecidos acessando-se o capítulo “Histórias vividas, histórias ignoradas” do livro “Piracicaba, 1964”, e também às paginas 312-314. O download gratuito está disponível em   http://editora.metodista.br/publicacoes/piracicaba-1964

 


Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

(Foto: Congresso da UNE, 1980, Piracicaba. Estádio Barão de Serra Negra)

 

2 thoughts on “Quem os conheceu? Quem se lembra deles?

  1. Iniciando nossa vida de estudante universitário. Movimento em prol da Abertura:ampla,geral e irrestrita. Lembro dos congressos no ginásio.Eventos nos envolvendo com questões éticas,políticas,humanas,a Historia acontecendo.

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