“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, reflete – através de uma expressão artística impressionista, pois dado em pinceladas esparsas e que só revelam seu sentido se visto no conjunto – o momento pelo qual passamos e sofremos. Há, no longa, todos os elementos presentes no movimento de cerco e razia que a razão imperial executa antes de extinguir aquilo que ela coloniza.
O filme se refere ao nome de uma cidade, que é uma espécie de última fortaleza em um país que se encontra na mais dura aridez intelectual, artística e política. Bacurau é um microcosmos de um Brasil ilhado e machucado, uma utopia, que perde cada vez mais espaço para o país do futuro, descrito pelo filme em termos de uma distopia, país cujo maior espetáculo na TV são execuções públicas no Vale do Anhangabaú. Uma distopia com uma utopia em seu cerne.Bacurau é uma cidade abandonada pelo poder público, mas é também uma comunidade em autogestão,a igreja não é necessária, as pessoas são solidárias e fazem valer o sentido original da palavra política: intervenção na cidade.
O movimento de colonização empreendido pela razão militar, movimento de pinça, algo comum no jargão militar, é belamente exemplificado em uma passagem, que envolve o museu da cidade. Se a igreja se transformou em um depósito, é no museu que se dá o “culto” cívico à cidade e a seus ancestrais – cangaceiros e marginalizados desde sempre. Quando um dos gringos invasores, adentra no templo desse microcosmos, há uma cena, um pequeno detalhe que pode passar despercebido pela maioria das pessoas. O invasor move os olhos e a mira de sua arma para os objetos que guardam a história de Bacurau, dentre tantos objetos de valor afetivo para aquela comunidade, ele pega com suas mãos uma pequena escultura de madeira de uma figura alada e enfia no bolso. Talvez ele tenha pensado em levar embora como um troféu, talvez não quisessedeixa-lo nas mãos dos “primitivos”. A cena de roubo, aparentemente sem importância, mostra uma permanência estrutural na forma como a razão imperial atua na zona de encontro entre o homem ocidental e o “resto”.
Voltemos no tempo: no dia 6 de setembro de 1931, atravessando a região habitada pelos Dogons, nas proximidades da cidade de Kéméni, uma expedição científica francesa, liderada pelo famoso antropólogo Marcel Griaule, deparou-se com um templo dedicado à divindade local chamada Kono. Muitos anos depois, Michel Leirispublicou um diário sobre aqueles dias (publicado no Brasil como África Fantasma), que permite traçar alguns paralelos entre o filme Bacurau e as relações de colonialidade entre o homem branco ocidental e o outro:
Em Kéméni (24 km de Bla), descoberta de uma magnífica choça não mais de Nya, mas de Kono. Já tinha visto a de Mpésoba (até entrei no pátio à noite), mas esta é bem mais bonita com seus nichos repletos de crânio e ossos de animais sacrificados, sob os ornamentos pontiagudos de terra seca em estilo sudanês. Morremos de vontade de ver o Kono. Griaule manda dizer que é preciso retirá-lo. O chefe do Kono manda responder que nós podemos oferecer um sacrifício.
Para entrar no templo de Kono era preciso fazer sacrifíciosde animais em respeito à entidade, mas, impacientes, Leiris e Griaule decidem entrar na choça por conta própria e, apesar das ameaças que pairam sobre aqueles que ousarem olhar o Kono sem o ritual necessário para isso, eles avançam assim mesmo. Tal situação é descrita por Michel Leiris nos mínimos detalhes:
A choça do Kono é um pequeno reduto fechado por algumas tábuas (uma delas em forma de cabeça humana) sustentadas por um pau fendido, a outra extremidade apoiada no chão. Griaule tira uma fotografia e levanta as tábuas. Surge o reduto: à direita, formas indefiníveis em um tipo de pasta marrom que é simplesmente sangue coagulado. No meio, uma grande cabaça repleta de objetos heteróclitos, entre os quais muitas flautas: de chifre, de madeira, de ferro e de couro. À esquerda, pendurado no teto, no meio de uma porção de cabaças, um pacote inominável, coberto com plumas de diferentes pássaros e no qual Griaule, que o apalpa, sente a presença de uma máscara. Irritadas com a tergiversação das pessoas, nossa decisão é tomada com rapidez: Griaule pega duas flautas e mete-a furtivamente na bota; devolvemos as coisas aos seus lugares e saímos.
Desta experiência, não apenas o roubo coincide, mas a forma como o diferente é submetido à uma lógica de enquadramento. Bacurau deve desaparecer, pois as forças que a sustenta não cabem em um futuro bolsonarista, bem como o respeito às tradições dos povos africanos deveriam sucumbir ao olhar do antropólogo, do engenheiro e militar, que os catalogaria em um sistema de medições ocidental.
Ao fotografar um templo que não deveria ser visto, Griaule não apenas desrespeitou o ritual ligado à divindade mas, também, desautorizou os saberes locais. Ao submeter a choça ao processo fotográfico, bem como a subsequente reprodução técnica dessa fotografia, Griaule atualizou seus fundamentos ritualísticos para uma existência serial, pois em sua existência aurática, a choça estava assentada em uma tradição local, que a fotografia deslocou para uma nova existência, cujo valor de exposição seria definitivo.
Poder-se-ia dizer que, numa linguagem benjaminiana, a unicidade e a aura daqueles objetos caíram como um anjo amaldiçoado. Griaule, ao “clicar” o interior da choça encarnou uma antiga crença Malinke, pois nos dizeres de Youssouf Tata Cissé, o fotógrafo seria um “feiticeiro comedor de homem”, quer dizer, no caso descrito acima, um feiticeiro devorador de deuses, pois no momento em que captou, através da máquina, aquilo que não poderia ser visto, o francês roubou os deuses de forma mais potente e humilhante que o caso concreto de roubo das flautas, Griaule roubou o “espírito ativo” de Kono.
Quando os europeus se dirigiam aos povos extra ocidentais, com suas câmeras, também apontavam para seus alvos e apertavam o “gatilho” – click -, roubando sua alma, transformando sua existência em uma vida serial, isto é, devastando as culturas e os modos de vida pré-existentes. Bacurau é sobre colonialidade.
Assim como a experiência colonial descrita por Leiris, o filme Bacurau lida com a mesma matéria histórica. A razão imperial promove razias sobre a terra na esperança de arrasa-la. Se no século XIX ela utilizava a metralhadora Maxim e câmeras fotográficas para tudo enquadrar no interior de sua métrica epistemológica, hoje ela utiliza drones e satélites. Tal como os romanos antigos, que jogaram sal sobre os escombros de Cartago, para que nada ali nascesse de novo, a razão imperial bombardeia-nos da mesma maneira, mas não no sentido romano. Ela não deseja uma terra improdutiva, ela deseja uma terra-máquina que produza somente o necessário à sua própria existência.
Rafael Gonzaga de Macedo é historiador e professor de História.
“Uma distopia com uma utopia em seu cerne.” É isso, Rafael, você traduziu exatamente o que senti ao ver Bacurau. Gostei bastante da sua análise, parabéns. Eu ainda estou sem palavras. Fui ao cinema ontem e ainda estou digerindo.