Ainda cabe sonhar

Ainda cabe sonhar

Na era da comunicação virtual, do mundo conectado em rede, as vozes mais sombrias parecem ter assumido um inegável protagonismo. Assim, o vazio, o superficial, o efêmero, o irrelevante, por meio de um grotesco jogo de manipulação, passou a ocupar o imaginário, como realidade a ser almejada, como ideal de realização existencial. Parece vicejar no contemporâneo a explicitação das visões de mundo mais desmedidas, insensatas e a defesa despudorada, hipócrita de situações que buscam perpetuar e reproduzir opressão moral e econômica. De certo modo, predomina uma mistura estranha que procura conciliar conservadorismo moralista e neoliberalismo econômico, tendo como base concepções fundamentalistas, a reduzirem e empobrecerem as possibilidades que a existência pode alcançar.

Em um contexto marcado por um emblemático estreitamento de perspectivas, seja no plano político, social e até mesmo existencial, torna-se fundamental e urgente vislumbrar caminhos, acenando para um outro devir. Na busca por se forjar alternativas, atitudes singelas e cotidianas podem gerar profundas e significativas transformações, apontando para novas possibilidades. No atual cenário, não há lugar para desculpas e nem subterfúgios, ninguém pode se furtar em defender a justiça e a liberdade. Esse é um desafio comum, coletivo, a exigir criatividade, ousadia e, sobretudo, esperança de cada pessoa.

É preciso fazer ecoar ideias capazes de alcançar o outro, de despertar consciências adormecidas, de alertar sobre os perigos do avanço de percepções limitadas sobre a religião, a política, a economia, as relações humanas. É imprescindível repercutir pensamentos que toquem e sensibilizem as pessoas, o mundo, de maneira a desencadear e impulsionar um vasto movimento, grávido de uma sociabilidade renovada, tendo como alicerces a democracia de alta intensidade, os direitos de cidadania e a ética da alteridade.

Chegar aos púlpitos, ocupar os palanques, gritar a plenos pulmões, disputar os espaços de fala e representação, de maneira a assumir, com coragem, a defesa da verdade. É urgente, então, que vozes lúcidas– tomadas pela sensatez, pelo senso crítico, pela postura transparente, pela generosidade–levantem-se contra todo obscurantismo, ignorância, racismo, discriminação e preconceito, veiculados sordidamente, mediante a proliferação de pós-verdades, de fake news.

Ainda cabe sonhar. A escrita de um texto, o convite à filosofia, a insistência perseverante por um pensamento crítico e problematizador, a abertura de espaços inusitados de interação, a sustentação de um diálogo despretensioso com anônimos interlocutores, podem se compor como estratégias a sedimentarem, talvez, a gênese de um novo tempo, a recriar a vida como singularidade, arte e potencialidade.

É fundamental agora retomar o equilíbrio, recompor a razão, realinhar o pensamento. A afirmação dos valores civilizacionais, no reencontro com as fontes da cultura, talvez seja o caminho para a reconstrução social. No campo da religião, a teologia pode apontar perspectivas profundas para a compreensão bíblica, de maneira a superar o reducionismo fundamentalista. Na política, a leitura dos pensadores que se tornaram clássicos, desvela-se imprescindível para se projetar uma democracia de alta intensidade, enterrando as ambições neofascistas. Na dimensão econômica, talvez baste a sensibilidade – ancorada nos princípios básicos de justiça e igualdade – para se perceber que os bens produzidos devem estar a serviço de todos, sendo compartilhados com equidade.

 

 

Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal, campus Piracicaba. Doutor em Filosofia e mestre em Ciências da Religião.

adelino.oliveira@ifsp.edu.br

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