Adeus a Lucília Reboredo

Faleceu na manhã deste sábado, 8, a professora e psicóloga Lucila Reboredo. Nome dos mais importantes da história da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), Lucília bravamente enfrentava – desde o ano 2003 – os sintomas terríveis da  esclerose lateral amiotrófica (ELA) que a acometera. Exemplo brilhante de luta pela vida, Lucília não se abatera nem mesmo quando a doença lhe tolheu os movimentos, a respiração natural e a deglutição. Imbuída de uma força  homérica, a professora notorizou-se nacionalmente quando escreveu e publicou o livro “A Dança dos Beija-flores no Camarão Amarelo” – obra cuja escrita se dera inteira e exclusivamente “com os olhos” (num método alfanumérico que se vale de uma tabela e jogos de piscadas).

Em homenagem a Lucília, reproduzimos abaixo uma resenha publicada em nosso Diário do Engenho quando do lançamento de seu livro.

(O corpo de Lucília seguiu para São Caetano).

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Lucília Reboredo: os beija-flores, a palavra e a vida

 

Alê Bragion

 

Vem da tradição esotérica hebraica a crença de que, pleno de Seu esplendor, Deus resolvera contemplar a Deus – e assim desdobrando-se em ciclos celestiais de sete emanações, criou o Senhor mundos espirituais que orbitam plenos do poder espectral da alegria e do júbilo divinos. No entanto, segundo tal tradição, no quarto e último ciclo, pôs-Se Deus a criar o mundo da matéria – destinado à espécie humana. Então, num supremo instante genesíago, eis que o Senhor, cheio de som e de fúria, fez do verbo o instrumento criador de tal universo. Dessa forma, e para além da criação, unia também o Senhor, para todo o sempre, a força da palavra e o poder gerador da vida. Por isso, quando hoje, nos ciclos iniciáticos, aprende o discípulo a reproduzir – letra a letra – os textos da tradição em hebraico antigo, ensina-lhe o mestre-rabino iniciado: “Cuidado, menino, se inverteres uma letra desse texto estarás alterando também o universo!”.

 

Ainda que distante dos ciclos do esoterismo judaico – aos quais provavelmente jamais pertenceu –, mas comungando da ideia de que por meio da palavra transubstancia-se o esplendor da vida, a psicóloga e professora Lucília Reborado traz a público o seu iluminado livro A Dança dos Beija-Flores no Camarão Amarelo: curso e percurso do adoecimento. Acometida, desde 2003, pela esclerose lateral amiotrófica (ELA) – patologia que lhe tolheu completamente os movimentos do corpo, sua respiração, sua deglutição e sua total autonomia física – Lucília, emanando-se à maneira divina e valendo-se do auxílio de uma tabela postada à sua frente, escreveu com olhos, piscando letra por letra, o texto que compõe as apaixonantes páginas de seu livro – repleto de relatos emocionados e de (pasmem!) testemunhos bem-humorados que descrevem o curso e o percurso do adoecer da autora.

 

Enraizada em sua cama, condenada pela sorte ao claustro de seu próprio corpo imóvel, Lucília, em particular instante genesíago, desdobrou-se em palavras, repartiu-se em texto, emanou-se em verbos – num movimento de expansão espiritual que é, ao mesmo tempo, redescoberta, reinvenção e renascimento. Como os beija-flores que dão título à sua obra, as palavras de Lucília – ou Lucília refeita em palavras – sobrevoam os seres, bicam as almas e pousam sobre os ramos nodosos da árvore da vida. Por outro lado, também como um beija-flor às avessas, não é Lucília quem – parada no ar, sem movimento rápido de asas – suga o néctar das flores à sua volta. Pelo contrário: é ela que, com sua palavra-vida, leva no bico a essência açucarada do prazer de viver (essência essa só produzida por aqueles que sentem vibrar o corpo quando, simples e naturalmente, percebem que a vida foi feita para ser vivida sob quaisquer circunstâncias.

 

“Sei que apenas quebrei as asas e que terei de reaprender a voar” – segreda Lucília aos leitores de seu livro, então conhecedores de sua história. De fato. Que Lucília voe sempre – e que seu voo carregue consigo também os nossos sonhos, e que o ruflar de suas asas possa nos arrastar a todos – mesmo que à força, mesmo que a medo, por conta de nossa falta de coragem – pelos mesmos ares que animam o seu exercício. E que o néctar que tanto ela leva consigo em sua palavra-vida, e que já nos alimenta hoje por meio de seu livro, nos seja sempre abundante e nos dê sempre a certeza de que a vida sempre é possível, desde que eternamente reinventada.

 (ilustração: mandala pintada por Lucília Reboredo)

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A Dança dos Beija-Flores no Camarão Amarelo – Curso e Percurso do Adoecimento.

De Lucília Augusta Reboredo

Apresentação: Ely Éser Barreto César

ISBN 978-85-60677-10-8

Piracicaba: Jacintha Editores, 2010

3 thoughts on “Adeus a Lucília Reboredo

  1. Toda as vezes em que vierem ao jasmim de Madagascar da minha varanda os beija-flores, pensarei em Lucilia, a quem não conheci pessoalmente ,mas q foi importantíssima na formação do meu filho e de tantos outros e q ensinou muito além das salas de aula. Voa livre agora!

  2. Lucília Reboredo foi minha mestra de psicologia social na Universidade de Mogi das Cruzes.
    Sempre brilhante em suas aulas e obrigando-nos a questionar a vida, a realidade de nosso país e a própria psicologia em seus meandros mais polêmicos, deixou uma lembrança bela do que é ser um profissional ético.
    Saudades e admiração de todos nós.

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