Eliana de Jesus Silva Ribeiro era nordestina, da pequena cidade de Filadélfia, do interior da Bahia. Dona Lili, como carinhosamente era chamada, chegou em São Paulo em 1995, vindo logo em seguida para Piracicaba. Como tantos brasileiros, migrou de sua cidade natal, deixando suas raízes, em busca de melhores condições, para fazer a vida, como se diz.
O feminicídio pode ser definido como o homicídio praticado contra a mulher. O assassinato acontece em decorrência da vítima pertencer ao gênero feminino. A misoginia – o ódio às mulheres –, a discriminação de gênero e a violência doméstica configuram-se como as motivações mais comuns que se encontram por trás do feminicídio. No Brasil, há uma terrível incidência do feminicídio como fruto da violência doméstica. As mulheres são brutalmente assassinadas por seus próprios companheiros.
É bem complexo definir e apresentar a forte personalidade de dona Eliana. Mulher de muitos sonhos e talentos: articulada, engajada, empreendedora, com muitas habilidades, portadora de uma alegria única e construtiva. Dona Lili acalentava seus anseios e projetos com singeleza e integridade. Mãe amada de duas filhas e avó zelosa de quatro netos, dona Lili planejava retornar à sua sempre saudosa Bahia. Queria estar com sua já idosa mãe, dona Elizia, tambémsofrida, trabalhadora do campo, cujas mãos calejadas e corajosas criaram os muitos filhos, posteriormente migrantes, construtores de toda a riqueza paulista.
Tipificado na lei 13.104/15, sancionada em 9 de março de 2015, o feminicídio é qualificado como um crime hediondo, portanto abominável, por causar grande comoção e repulsa de toda a sociedade. Apenas em 2015, sob o governo de uma mulher, a presidenta Dilma Rousseff, é que a lei brasileira passou a reconhecer que há uma violência brutal e criminosa dirigida especificamente contra as mulheres.
Por muitos anos, em Piracicaba, dona Lili trabalhou com afinco e educou as duas filhas. Sempre esperançosa, elaborava a ideia de um destino, apartado da opressão e da violência cotidiana. Em anos de casamento, suportou o alcoolismo do marido, a violência verbal e o cerceamento constante. Ao encontrar as filhas adultas, o desejo da autonomia profunda se fez premente: era imperioso galgar sonhos e percorrer caminhos alternativos. Novas possibilidades a chamavam, uma vida com outras oportunidades estava em pauta: era o tempo de semear projetos, cultivando no coração e no pensamento a esperança, a vocação para a felicidade.
Há pouco separada do marido, passado um longo tempo de intenso conflito, a história, mais uma vez, recontaria o ódio, o machismo, a intolerância, o controle excessivo, a dominação irracional, o medo desenfreado, a ceifarem a vontade e a longa jornada. O companheiro, com quem compartilhou mais de 30 anos de convivência e muitos planos, acovardado e com inominável violência, tirou, de dona Lilia, a vida, a respiração, a energia vital para prosseguir.
No Brasil, as maiores vítimas do feminicídio são negras e jovens, com idade entre 18 e 30 anos. Em dados de 2015, o Brasil situa-se como o quinto país no mundo com o maior índice de feminicídio. Os registros apontam que a violência contra a mulher só tem crescido, em 2018 foram 1173 mulheres vitimadas por feminicídio.Só no primeiro trimestre de 2019, em São Paulo, já há registros de um aumento na ordem de 76% de feminicídios, quando comparado com os registros do mesmo período de 2018.
Duramente machucada, com todas as entranhas violadas, em uma triste tarde de domingo, no dia 18 de agosto de 2019, dona Eliana faleceu, em razão do homem, sempre muito íntimo a ela, não acatar seus desejos, sua vontade, a busca irreversível pela liberdade, que naturalmente lhe cabia.
O feminicídio cometido contra dona Lili configura-se como ato brutal de violência que alcança todas as mulheres e a própria humanidade em seu conjunto. Espera-se que o impacto e forte comoção diante dos terríveis eventos que calaram a vida de dona Lili possam despertara sociedade do sentimento de banalidade frente à tantos relatos de violência, fazendo ecoar o grito dilacerante de dor,a se levantar como memória, mas também como repúdio a todas as formas de violência contra a mulher.
Eliana de Jesus Silva Ribeiro: Presente!
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo e professor no Instituto Federal campus Piracicaba.
Emocionante homenagem a essa mulher valorosa que compartilhou dos seus afetos e se dedicou tanto aos cuidados da família! Inaceitável essa violência tão frequente.
Olá prezada Ivone, realmente essa situação inaceitável. O grande desafio que se coloca é construção de uma nova cultura, com estruturas justas e solidárias.
Vamos juntos, com esperança sempre!
Texto belissimo, de uma realidade aviltante. E de uma verdade urgente.
Caríssima Claudia, obrigado pela leitura atenta e pelo compartilhar de perspectivas.
Fraternal abraço.
Vou repetir algo semelhante dito por um coveiro para outra mulher assassinada, também de sobrenome Jesus. Depois de 2000 anos parece que nada mudou…
Caro Sérgio, é uma história de séculos de violência. Precisamos criar estruturas que superam é lógica brutal.
Com os melhores cumprimentos,
Adelino,
A Dona Eliana não passou a ser exaltada por ter sido incluída nas estatísticas vexatórias da violência contra a mulher, mas seu nome ecoa como um chamado à lucidez, pois como o título de seu texto já revela, a importância repousa exatamente na pulsação da vida, de cada mulher, de cada pessoa. Como homem, e como marido, não consigo apreender a extensão da vileza de caráter de um companheiro que se revela um algoz cruel e brutal. Da mesma forma que, como pai, entendo a necessidade de impor limites e ser rigoroso com os filhos – ainda que não o tenha sido na medida total da necessidade – no intuito de ajudá-los a superar as suas limitações e adquirir conhecimento e confiança, mas jamais poderei assimilar um tratamento violento, truculento, desumano, um filho sendo agredido ou abandonado pelos pais.
Assassinatos os temos às centenas diariamente, e parecem já não nos perturbar tanto, tal é a banalização a que a vida tem sido exposta. Mas a indiferença é apenas superficial e circunstancial. A você, a mim, a todos nós que abnegamos a misoginia e o desprezo pelo outro, ela pode rondar, mas não ultrapassa a casca da nossa alma.
Pois, quando a morte violenta de uma mulher que desfrutou do convívio do nosso lar, que foi o amparo no cuidado com nossos filhos, que se dedicou a nos oferecer o seu carinho preparando e compartilhando conosco as refeições, que repartiu conosco as suas angústias, seus anseios, suas amarguras, mas não deixou de esbanjar esperança em projetos de renovação, de mudança de trajetória, essa morte respira o seu hálito gélido em nossa nuca, imprime o seu nome indesejável na nossa indignação, estremece os nossos olhos embaçados e nos faz chorar amargamente a decadência de uma sociedade que ainda convive com uma cultura burra, notadamente masculina, da posse do cônjuge, como um objeto de barro, que se atira ao chão após secar-lhe a essência que servia apenas para saciar a sede material do desejo.
Esvaziada para ele no que considerava seu conteúdo útil, já não exprimia aos seus olhos cegos o valor de sua riqueza vital: todas as possibilidades de uma caminhada compartilhada, da celebração das conquistas e das barreiras transpostas, de uma trajetória de companheirismo, dedicação e dependência mútuas. É a aviltante supremacia da calhordice covarde estilhaçando a vida da mulher, que devia ser amada, respeitada na sua condição de pessoa livre e capaz de assumir suas escolhas, ainda que essa escolha representasse o fim de um relacionamento que perdeu a significação muito antes dessa tragédia.