Lembro-me bem da tarde em que o diretor da minha escola, em São Carlos, entrou na classe da segunda série do ginásio para dizer que estávamos sendo dispensados mais cedo para ir para casa. “E todos têm que ir direto para casa, sem passar pelo centro”. Era 1968 e a cidade estava repleta de policiais e militares ali reunidos para impedir uma passeata de estudantes e trabalhadores. A escola inteira foi dispensada. Muitos de nós, crianças de 11, 12 anos, sentimos medo, mesmo sem que ninguém nos explicasse o que estava havendo.
Penso que, às vezes, é preciso uma vida inteira para se entender como o golpe de 64 nos afetou.
Nascida em uma família conservadora e evangélica, só depois dos 50 fui saber que na Marcha pela Família, em 64, o pastor de minha igreja – a quem minha família respeitava e ouvia pelo menos dois sermões por semana – abriu a Marcha pela Família e pela Liberdade ao lado do bispo católico – possivelmente a única manifestação ecumênica daquele tempo na minha cidade natal. Anos depois, no ensino médio, como presidente do Centro Cívico da escola – era o que a legislação permitia à época – fui chamada pela direção da escola a saudar um coronel que era convidado de honra nas festividades do 7 de setembro. Devo ter lido uma saudação formal qualquer, bem própria de adolescentes. Só depois dos 50 fui descobrir que o coronel a quem eu saudara era o responsável militar pela área de Ribeirão Preto onde ficara presa Madre Maurina, freira acusada de subversão, cujas torturas naquele espaço foram amplamente denunciadas, e que foi trocada nas negociações para libertação de um embaixador sequestrado em 1970 pela VPR, sendo banida para o México. Ao final dos anos 70, terminando a graduação em Comunicação na USP, tive meu primeiro emprego como editora de um jornal em São Carlos. Assim que assumi, o proprietário do jornal me acompanhou em visita ao delegado de polícia local, para me apresentar a ele, num ato de pura subserviência política que só fui entender anos depois.
Mas foi a força de chegar a USP, em 1975, ainda caloura, e ver muitos chorando sentados na sarjeta da entrada da Escola de Comunicações e Artes, que me fez dedicar anos de estudo e pesquisa para entender o que fora 64 para o país e para mim. Era uma segunda-feira e a USP começava a tomar conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, que era professor da ECA, assassinado no DOI-CODI. Por quê? O quanto aquilo era assustador? Minha capacidade de entender o mundo começou a mudar naquela semana que também transformou o país. Nos anos seguintes conheci e convivi com outros que haviam sido presos naqueles dias com Herzog. Vi as cicatrizes. Me indignei. Precisava entender para me entender, porque aquele era o meu tempo.
Comecei as pesquisas sistemáticas nos arquivos do DEOPS-SP assim que ele foi aberto ao público ainda ao final dos anos 1990. Nenhuma organização de seu acervo, as caixas se amontoavam numa casa alugada na rua Maria de Queiroz, na região da Paulista, em São Paulo. Para pesquisarmos, tínhamos à disposição mesas improvisadas por tábuas apoiadas em cavaletes. Os atendentes faziam o melhor possível, mas seguramente não tinham ideia do conteúdo que manuseavam. Ninguém tinha, a não ser talvez os militares que tentaram “limpar” os arquivos antes que viessem a público. Numa tarde, uma moça chegou, pediu as pastas que relacionavam um nome. Era de seu irmão, desaparecido há anos. O atendente trouxe e a entregou sem maiores explicações. Assim que vi o código que identificava o material, me aproximei da moça e lhe disse que talvez ela pudesse se chocar, talvez fosse melhor vir com alguém para conferir as informações. Era parte dos dossiês que reuniam fotos e dados de autópsias. A moça abriu o material, teve um acesso de choro, acho que sequer imaginava as imagens ali reunidas. Saiu quase que correndo. Permaneci ali, impactada, sem saber também como reagir. E continuei, durante quase dois anos, indo semanalmente ler aqueles papéis. Uma dor a cada visita, uma surpresa a cada registro de um universo que parecia mais ficção do que um tempo realmente vivido tão recentemente.
64 deixou marcas de muitas maneiras, mesmo para aqueles que pessoalmente não foram torturados, presos, tiveram amigos e familiares desaparecidos. As minhas ficaram como responsabilidade para escrever, escrever e escrever sobre esse tempo.
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No ano passado, quando planejávamos e editávamos a série especial “60 anos do golpe”, escrevi esse texto muito pessoal. Mas à medida que nos chegavam outros depoimentos, percebi o quanto o meu acrescentaria pouco. No entanto, penso que não faz sentido mantê-lo num arquivo escondido no meu computador. Como tantas outras histórias, talvez também possa fazer os mais jovens entenderem o que foram aqueles tempos.
Histórias pessoais – mas essencialmente políticas – passam desapercebidas ao longo da vida da maioria de nós. E esse viés do que realmente aconteceu e não está nos livros merece leitura. Na série, destaco justamente a publicação dos depoimentos, que podem ser acessados por aqui. A começar pelo de Lídice Salgot, filha de um prefeito de Piracicaba – cujas acusações dos militares nunca foram provadas ( https://diariodoengenho.com.br/logo-cedo-ouvi-minha-mae-falando-ao-telefone-com-pessoas-amigas-que-poderiam-ajuda-la-naquele-momento-escutei-francisco-foi-preso-e-nao-sei-para-onde-foi-levado/ ). Seguida pelos relatos do Prof. Dorgival Henrique, por cujas aulas passaram centenas de jovens na UNIMEP, e que para chegar a esse tempo teve que viver na clandestinidade por anos ( https://diariodoengenho.com.br/filmado-sentado-na-grama-fazendo-reuniao-com-estudantes-e-representante-da-une-fui-punido-com-o-decreto-477-depoimento-de-dorgival-henrique/ ). Ou então do pastor Nilson Silva Jr, que não teve o sogro levado pelos militares apenas pelas relações que ele mantinha ( https://diariodoengenho.com.br/o-oficial-do-exercito-era-da-igreja-batista-e-por-meu-sogro-ser-metodista-mereceu-sondagem-mais-cuidadosa-depoimento-do-pastor-nilson-da-silva-junior/). E há ainda vários outros publicados nesta série, mas vale aqui sugerir a leitura também do relato Francisco Romero, também atuante na UNIMEP junto a grupos de periferia, depois de ter militado ao lado de D.Pedro Casaldáliga e ter que permanecer no exílio, em vários países, durante anos (https://diariodoengenho.com.br/caminhamos-varios-dias-pela-mata-e-chegamos-a-conceicao-do-araguaia-por-barco-em-goias-velho-passei-um-mes-escondido-as-vezes-disfarcado-de-padre-depoimento-de-chico-rome/).
O tempo passa, mas a força dos depoimentos não.
Beatriz Vicentini, 69 anos, jornalista, foi uma das editoras da série 60 anos do golpe, no Diário do Engenho, em 2024.