Chegamos à cidade de São Félix no início dos anos 70. Escalaram-nos para trabalhar com o Pe. Francisco Jentel. Na época, São Félix tinha 600 habitantes, não havia escola, nem médicos, nem eletricidade. A maioria dos moradores era formada por posseiros, comerciantes e trabalhadores das fazendas ou criadores de gado. Na região houve implantação de grandes fazendas, principalmente a CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia -, que chegou a comprar um lote de 200.000 hectares no Vale do Araguaia, onde se situava inclusive a cidade de Santa Terezinha. Os índios Tapirapé, agricultores, viviam em uma aldeia cheia de árvores grandes e verdes, onde o Rio Araguaia se divide em dois.
Minha primeira experiência com a crueldade daquela realidade se deu alguns dias depois. Vi um homem moribundo caminhando na direção da Missão. Fui ao seu encontro e o agarrei antes que caísse. Era um peão debilitado, com fome, com malária, esfolado pela fuga pela mata, que havia fugido de um acampamento tipo prisão. Em geral os “gatos” e pistoleiros da fazenda assassinam quem foge. Ele havia escapado.
Fizemos um plano de trabalho com as professoras do ensino básico que reforçava a formação delas com técnicas pedagógicas e discussões sobre educação popular. Nosso objetivo era aplicar a alfabetização de adultos usando a filosofia de Paulo Freire. Na casa das roças dos posseiros é que pudemos mapear onde fazer alfabetização ou reuniões sobre a cooperativa, de cuja parte contábil eu passei a cuidar, e outros assuntos ligados à luta pela terra.
Passados alguns meses, a Missão alugou uma casa feita de palha e parte de alvenaria, no caminho das roças e da aldeia indígena. A casa era estratégica para receber posseiros e índios que quisessem passar alguma noite ou “filar” alguma refeição. Essa experiência podia nos aproximar mais dessas pessoas e formar uma relação de confiança.
Em Santa Terezinha, o conflito entre a população, posseiros e CODEARA ia se avolumando. Desde 1967, a pressão sobre os legítimos ocupantes da terra era empregada por todos os meios. Primeiro tentando convencer os camponeses a abandonar as terras, exibindo títulos de propriedade das terras, mas também lhes prometendo uma indenização mínima. Os camponeses poderiam aceitar ou não a proposta. Em casos negativos, utilizava-se de pressões e ameaças e depois violência.
A CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – começou a divulgar os acontecimentos da região. O Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, pediu uma trégua, garantindo que o governo iria fazer uma proposta para resolver a situação dos posseiros – o que não aconteceria. Na região o conflito se agravava.
Então, sob pretexto de urbanização, aconteceu a destruição de um dispensário em construção em um terreno da paróquia, por ordem do gerente da CODEARA. Pistoleiros agiram com violência. A Companhia, além de mandar avionetas voarem baixo para reconhecer o que estava acontecendo, disse que a Polícia Militar iria atacar os posseiros. Foram vários dias de tensão e boatos. O ocorrido desencadeou um confronto armado, envolvendo posseiros, delegados, policiais e funcionários da CODEARA. Nele estavam uns 45 posseiros, que se revezaram em quatro dias de espera pela repressão que sabiam que viria. Fizeram várias trincheiras para duas pessoas, com um banheirinho ao lado, construídas na parte alta e atrás de umas bananeiras. Algumas tinham tambores de combustível cheio de areia. Isto foi considerado obra de estratégia militar de guerrilheiros treinados em Cuba pelos generais e comandantes do Exército, quando invadiram a cidade.
Durante o conflito, os posseiros encontraram num veículo a pasta do capitão da Polícia Militar, com remédios, uma automática ponto 40 e o telegrama das autoridades militares, autorizando a prisão do Pe. Jentel e líderes civis, entre eles eu, minha esposa Rosa e mais dois posseiros.
A visita de D. Tomás Balduíno nos informou da gravidade da repressão. Sugeriu que saíssemos para Anápolis e depois nos escondêssemos em Goiás Velho. Os índios prepararam uma cabana a um quilômetro da aldeia para que ficássemos escondidos. Depois, caminhamos vários dias pela mata. Conseguimos chegar a Conceição do Araguaia por barco, com ajuda dos índios Tapirapé, hábeis em remar sem fazer barulho.
Depois de chegar a Goiás Velho, fui para a Diocese de Itumbiara, na casa episcopal, onde passei mais de um mês escondido, às vezes disfarçado de padre. Fui visitado pelo bispo D. Tomás, cuja missão era levar a mim e a Rosa para fora do país. A repressão estava matando a maioria dos guerrilheiros das várias organizações de esquerda. A única maneira era sair por terra. Um dos companheiros da Pastoral da Terra nos acompanhou até a fronteira com o Paraguai. Tomamos um ônibus os três, cada um em bancos diferentes. Se houvesse prisão, tentaríamos avisar o pessoal da Igreja, para ver se podiam nos salvar. Tivemos sorte e não houve problemas na passagem. Do Paraguai chegamos à Argentina.
Nota dos editores: Pe. Francisco Jentel, que era francês, foi expulso do Brasil em 1975 por decisão do Ministério da Justiça. A Prelazia de São Félix do Araguaia foi uma das áreas de maior enfrentamento entre religiosos – coordenados pelo bispo nomeado em 1972, D. Pedro Casaldáliga (1928-2020) – e os órgãos de repressão da ditadura militar. Suas lutas ganharam destaque internacional e mobilização em favor de Casaldáliga por várias entidades de direitos humanos e organizações católicas.
Depoimento de Francisco Romero, que se transferiu para Piracicaba em 1983, depois de viver exilado em vários países. Na UNIMEP, dirigiu programas de educação popular, ação cultural e transferência de tecnologia apropriada para populações carentes. Morreu em 2020 e o depoimento acima é um extrato editado de sua biografia, que a família busca publicar.
(Foto: Rosa e Francisco Romero, com o filho Iantã no colo, em Goiás. Iantã foi batizado por D. Pedro Casaldáliga, em São Felix do Araguaia, onde o casal atuou durante algum tempo antes de ir para o exílio. Todos os três já faleceram).
Conviver com o Chico foi um privilégio!
Agradecemos pela mensagem, professora.
Abraço!
Os editores.
Chico Romero foi um homem de imensa coragem e dedicação à causa popular! Que descanse em paz!
Professor!
Obrigado pela mensagem, pelo depoimento anteriormente neste site também publicado e pelo compartilhar.
Abraço fraterno.
Os editores.
Saudades do Chico Romero! Participei, junto com outros colegas da Unimep, de projeto sob a coordenação dele, quando conheci Moçambique. Realmente, um grande privilégio estar com ele. Não dá para esquecer.
Professora Cristina Fargetti!
Agradecemos muito pela leitura e mensagem.
Um abraço!
Os editoes.