Já não há mais o que se falar de “Ainda estou aqui” como filme – seja em críticas, seja em elogios, em termos técnicos. Essa fase está superada. “Ainda estou aqui” precisa agora ser analisado e entendido como um fenômeno cultural, que acionou o gatilho – de maneira efetiva e indiscutível – da recuperação da memória do país e do brasileiro comum pouco afeito a questões políticas, de preservação da história, do processo lento, mas que se reforça a cada dia quanto a um olhar sobre 64 sem preservar a versão há tanto tempo defendida pelos militares.
Gente que nunca quis saber sobre 64 agora conversa sobre desaparecimentos de uns e outros. Os mais jovens dizem que nunca souberam que era assim – e começam a acreditar que foi assim mesmo. Os mais velhos se emocionam mais do que se imaginaria ao trazer ao presente histórias de perdas e perseguições nunca punidas. O Oscar, que é a ponta mais glamourosa da indústria cinematográfica, com seus próprios interesses e referenciais, foi, entretanto, como que o aval oficial de que a história sórdida da ditadura militar brasileira merecia ser conhecida no mundo inteiro – portanto, momento de se entender e acreditar que nem tudo se pode deixar embaixo do tapete o tempo todo.
Para além das reações populares da torcida no domingo de Carnaval, das imensas bilheterias, da campanha competente sobre o filme, há que se destacar os fatos novos que vieram à tona a partir do momento que a produção foi ganhando espaço. Desde o militar que se apresentou para garantir que o corpo de Rubens Paiva foi jogado no mar, até o relato de que os embaixadores americanos no Brasil à época do desaparecimento já sabiam, dois dias após Rubens Paiva ter sido levado por militares, que ele já estava morto, vieram à tona.
Ninguém mais duvida do quanto o envolvimento da população começa a incomodar, a ponto do Instituto Brasil Pela Liberdade – grupo de direita bastante organizado no país, que dissemina em aulas online as ideias de Olavo de Carvalho – divulgar uma nota oficial denunciando que, escudado na ideia de obra de arte, o filme não passa de “agenda comunista”, alertando para o momento que o atual regime possa tornar obrigatória sua exibição em escolas e universidades.
Mas que não se pense que o outro extremo do espectro político também não começa a se manifestar querendo tirar proveito deste momento. Vexatória e desnecessária a polêmica envolvendo a ex-presidente Dilma Roussef – que declarou que a história de Eunice e Rubens Paiva pode ser contada em função do trabalho da Comissão Nacional da Verdade – e a reação da Fundação Fernando Henrique Cardoso querendo defender que os avanços sobre os efeitos da ditadura de 64 já haviam sido efetivados no governo FHC com a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Chegaremos a esse ponto – de querer se definir os donos de um processo de se garantir a história e a reação sobre o que aconteceu durante a ditadura militar?
O fato é que com novos livros, novas publicações, novas denúncias, novas disputas para se ver quem já havia feito alguma coisa nesta área, o grande mérito de “Ainda estou aqui” é tornar corriqueiro – sem que se entenda o termo como limitante, mas sim como algo que se incorpora ao que todos sabem e falam sobre – o tema dos desaparecimentos políticos da ditadura de 64, a participação dos militares, um tempo que se tentou esconder pela força. E, convenhamos, de repente os brasileiros elegerem Eunice Paiva – via transformação de Fernanda Torres em ícone – como heroína é, sim, realmente um avanço que poucos poderiam prever meses atrás. Processo muito mais cultural que político, admitamos.
Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editou a série especial “60 Anos do Golpe”.
Mas pelo que vi, quem disse que o livro foi possível por conta da Comissão da Verdade não foi o Marcelo Rubens Paiva?
Erich, as menções à Comissão da Verdade vieram de muitos daqueles que, após a repercussão do filme, voltaram às questões históricas do desaparecimento de Rubens. Especificamente nunca vi esse registro a que você se refere do Marcelo ter dito que o livro foi possível por conta da Comissão da Verdade. Mas o fato é que – com cada um querendo fazer valer politicamente suas iniciativas – a polêmica só nasceu depois que a presidente Dilma Rousseff fez um comentário no Instagram ” “É motivo de orgulho saber que a história de Rubens Paiva e de sua família —especialmente a busca incansável de Eunice Paiva pela verdade e pela justiça —pôde ser contada graças ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que criei durante meu governo para investigar os crimes da ditadura”. A Fundação Fernando Henrique Cardoso soltou então uma nota oficial enfatizando a importância de outras iniciativas no governo anterior, de Fernando Henrique, que teriam propiciado esse registro da versão correta. Detalhes em https://www.poder360.com.br/poder-governo/fundacao-fhc-rebate-dilma-sobre-memoria-da-ditadura-militar/