Repressão e Repetição

Repressão e Repetição

O texto reproduzido abaixo tem mais de 10 anos, mas continua mais atual que nunca. Publicado no site da Comissão Nacional da Verdade (CNV), é assinado pela psicanalista Maria Rita Kehl – que também foi membro daquele colegiado. O texto reflete e sintetiza os efeitos e a necessidade de ainda vencermos o silêncio com relação aos militares e ao golpe de 64. Para não termos que, ainda mais vez, daqui 10 anos, voltarmos às mesmas questões e às mesmas ameaças que perduram há mais de meio século no Brasil.

Publicamente, agradecemos a Maria Rita Kehl pela gentileza da cessão de seu texto para que pudéssemos encerrar com ele esta série.

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Todos Estados totalitários se apoiam na supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o cidadão praticadas em “nome da ordem”, a revelar que na vida social não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na consolidação do terrorismo de Estado. Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores.

Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do estado contra militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores, cientistas, artistas e tantos outros – cuja prova está documentada em arquivos públicos, muitos deles considerados ultrassecretos – o relatório final produzido pela Comissão da Verdade pode restaurar um importante capítulo da experiência política brasileira. A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder, e que por isso se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos – a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados. Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter Benjamin. Para isto é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. “Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça”.

Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história. Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintomas sociais. O Brasil ainda sofre com os efeitos da falta de acesso à verdade dos períodos vergonhosos de sua história, desde a escravidão até a ditadura militar. O modo como a ditadura negociou sua dissolução com a sociedade brasileira – uma negociação entre quem tinha as armas na mão e quem até então esteve sob a mira delas – funcionou como um verdadeiro convite ao esquecimento. O apagamento rápido (e forçado) dos crimes da ditadura lembra os efeitos perversos do esquecimento dos crimes da escravidão. No segundo caso, a falta de reconhecimento do estatuto criminoso de três séculos de escravidão, impediu a promoção de políticas de reparação às populações afrodescendentes recém libertas do cativeiro. Os sintomas do esquecimento estão aí até hoje, na perpetuação muitas vezes impune do trabalho escravo em fábricas e fazendas, a lembrar a advertência de Nabuco de que a prática continuada da escravidão perverteria a elite brasileira.

Não é absurdo pensar que o Brasil, país do esquecimento fácil, do perdão concedido antes por covardia e complacência do que por efeito de rigorosas negociações, seja um país incapaz de superar sua violência social originária. Os sintomas da brutalidade consentida ressurgem nas execuções policiais que vitimam jovens nas periferias de São Paulo, nas favelas do Rio, e em todas as outras grandes cidades brasileiras. Ressurge nos assassinatos de defensores da floresta e pequenos agricultores, por jagunços e policiais a mando de grandes grileiros de terras. E se repete como farsa em episódios recentes, como o da bomba lançada dia 7 de março contra a sede da OAB do Rio de Janeiro, acompanhada das mesmas ameaças sinistras com que agentes da repressão tentaram intimidar os que articulavam, na década de 1980, a volta do Estado de Direito. Ou nas acusações de militares da reserva contra investigações conduzidas pela CNV, como se fosse o trabalho da Comissão, e não os abusos cometidos no passado, que mancharam a imagem das Forças Armadas. Ou ainda em artigos como os de Contardo Calligaris, que conjeturou sobre a suposta conveniência de se torturar alguém sem levar em consideração que a comunidade internacional já decidiu que a tortura é crime de lesa humanidade.

O texto integral pode ser acessado em:

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/mkt_direito_a_verdade.pdf

 

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